domingo, 1 de maio de 2011

Segunda Confissão Helvética

http://comunidadewesleyana.blogspot.com/2010/04/documentos-da-igreja-xii.html


Elaborada em 1562 por Heinrich Bullinger, publicada em 1566 por Frederico III da Palatina, adotada pelas Igrejas Reformadas da Suíça, França, Escócia, Hungria, Polônia e outras. 

1. Da Sagrada Escritura como a verdadeira Palavra de Deus 

Escritura Canônica. Cremos 2ª página das confissões.htme confessamos que as Escrituras Canônicas dos santos profetas e apóstolos de ambos os Testamentos são a verdadeira Palavra de Deus, e têm suficiente autoridade de si mesmas e não dos homens. O próprio Deus falou aos patriarcas, aos profetas e aos apóstolos, e ainda nos fala a nós pelas Santas Escrituras.

E nesta Escritura Sagrada a Igreja Universal de Cristo tem a mais completa exposição de tudo o que se refere à fé salvadora e à norma de uma vida aceitável a Deus; e a esse respeito é expressamente ordenado por Deus que a ela nada se acrescente ou dela nada se retire.

A Escritura ensina plenamente toda a piedade. Julgamos, portanto, que destas Escrituras devem derivar-se a verdadeira sabedoria e piedade, a reforma e o governo das igrejas, também a instrução em todos os deveres da piedade; enfim, a confirmação de doutrinas e a refutação de todos os erros, assim como todas as exortações segundo a palavra do apóstolo: ‘Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão”, etc. (II Tim 3.16-17). E ainda: “Escrevo-te estas cousas”, diz o apóstolo a Timóteo, “para que fiques ciente de como se deve proceder na casa de Deus”, etc. (I Tim 3.14-15).

A Escritura é a Palavra de Deus. O mesmo apóstolo diz aos tessalonissenses: “Tendo vós recebido a palavra que de nós ouvistes, que é de Deus, acolhestes, não como palavra de homens, e, sim, como, em verdade é, a palavra de Deus”, etc. (I Tes 2.13). E o Senhor disse no Evangelho: “Não sois vós os que falais, mas o Espírito de vosso Pai é quem fala em vós” (Mat 10.20); portanto, “quem vos der ouvidos, ouve-me a mim; e, quem vos rejeitar, a mim me rejeita; quem, porém, me rejeitar, rejeita aquele que me enviou”, (Mat 10.40; Luc 10.16; João 13.20).

A pregação da Palavra de Deus é a Palavra de Deus. Portanto, quando esta Palavra de Deus é agora anunciada na Igreja por pregadores legitimamente chamados, cremos que a própria Palavra de Deus é anunciada e recebida pelos fiéis; e que nenhuma outra Palavra de Deus pode ser inventada, ou esperada do céu: e que a própria Palavra anunciada é que deve ser levada em conta e não o ministro que a anuncia, pois, mesmo que este seja mau e pecador, contudo a Palavra de Deus permanece boa e verdadeira.

Nem pensamos que a pregação exterior deve ser considerada infrutífera pelo fato de a instrução na verdadeira religião depender da iluminação interior do Espírito; porque está escrito: “Não ensinará jamais cada um ao seu próximo... porque todos me conhecerão” (Jer 31.34), e “nem o que planta é alguma cousa, nem o que rega, mas Deus que dá o crescimento”, (I Cor 3.7). Pois, ainda que ninguém possa vir a Cristo, se não for levado pelo Pai (cf. João 6.44), se não for interiormente iluminado pelo Espírito Santo, sabemos contudo que é da vontade de Deus que sua palavra seja pregada também externamente. Deus poderia, na verdade, pelo seu Santo Espírito, ou diretamente pelo ministério do anjo, sem o ministério de São Pedro, ter ensinado a Cornélio (cf. At 10.1 ss); não obstante, ele o envia a São Pedro, a respeito de quem o anjo diz: “Ele te dirá o que deves fazer” (cf. At 11.14).

A iluminação interior não elimina a pregação exterior. Aquele que ilumina interiormente dando aos homens o Espírito Santo é o mesmo que deu aos discípulos este mandamento: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16.5). E assim, em Filipos, São Paulo pregou a Palavra externamente a Lídia, vendedora de púrpura; mas o Senhor, internamente, abriu o coração da mulher (At 16.14). E o mesmo São Paulo, numa bela gradação, em Rom 10.17, chega, afinal, a esta conclusão: “E assim, a fé vem pela pregação e a pregação pela palavra de Cristo”.

Reconhecemos, entretanto, que Deus pode iluminar quem ele quiser e quando quiser, mesmo sem ministério externo, pois isso está em seu poder; mas aqui falamos da maneira usual de instruir os homens, que nos foi comunicado por Deus, tanto por mandamento como pelo exemplo.

Heresias. Detestamos, portanto, todas as heresias de Artêmon, dos maniqueus, dos valentinianos, de Cerdon e dos marcionitas, os quais negaram que as Escrituras procediam do Espírito Santo; ou não aceitaram algumas partes delas, ou as interpelaram e corromperam.

Apócrifos. Contudo, não dissimulamos o fato de que certos livros do Velho Testamento foram chamados Apócrifos pelos antigos autores, e Eclesiásticos por outros, porquanto alguns admitiam que fossem lidos nas igrejas, não, porém, invocados para confirmar a autoridade da fé. Assim também Santo Agostinho, em sua De Civitate Dei, livro 18, cap. 38, observa que “nos livros dos Reis, nomes e livros de certos profetas são citados”; mas acrescenta que “eles não se encontram no Cânon”; e que “os livros que temos são suficientes para a piedade”.

2. Da interpretação das Escrituras Sagradas; e dos santos padres, dos concílios e das tradições

A verdadeira interpretação da Escritura. O Apóstolo São Pedro disse que as Escrituras Sagradas não são de interpretação particular (II Ped 1.20). Assim não aprovamos quaisquer interpretações; pelo que nem reconhecemos como a verdadeira ou genuína interpretação das Escrituras a que se chama simplesmente a opinião da Igreja Romana, isto é, a que os defensores da Igreja Romana claramente sustentam que deve ser imposta à aceitação de todos. Mas reconhecemos como ortodoxa e genuína a interpretação da Escritura que é retirada das próprias Escrituras segundo o gênio da língua em que elas foram escritas, segundo as circunstâncias em que foram registradas, e pela comparação de muitíssimas passagens semelhantes e diferentes, e que concorda com a regra de fé e amor, e mais contribui para a glória e a salvação dos homens.

Interpretação dos santos padres. Por isso, não desprezamos as interpretações dos santos padres gregos e latinos, nem rejeitamos as suas discussões e os seus tratados sobre assuntos sagrados, sempre que concordem com as Escrituras; mas respeitosamente divergimos deles, quando neles encontramos coisas estranhas às Escrituras ou contrárias a elas. E não julgamos fazer-lhes qualquer injustiça nesta questão, visto que todos eles, unanimemente, não procuram igualar seus escritos com as Escrituras Canônicas, mas nos mandam verificar até onde eles concordam com elas ou delas discordam, aceitando o que está de acordo com elas e rejeitando o que está em desacordo.

Concílios. Nessa mesma ordem colocam-se também as definições e cânones dos concílios.

Por esse motivo, nas controvérsias religiosas não aceitamos como imposição as simples opiniões dos Santos Padres ou os decretos dos concílios; muito menos, os costumes herdados ou, até, o fato de ser uma opinião partilhada por uma multidão ou consagrada por um longo tempo. Quem é o juiz? Portanto, em questão de fé, não admitimos juiz algum, a não ser o próprio Deus, que, pelas Santas Escrituras, proclama o que é verdadeiro, o que é falso, o que deve ser seguido ou o que deve ser evitado. Assim, apoiamo-nos exclusivamente nos julgamentos de homens espirituais, por eles tomados à Palavra de Deus. Jeremias e outros profetas condenaram severamente os concílios de sacerdotes estabelecidos contra a lei de Deus; e nos advertiram diligentemente que não ouvíssemos os nossos pais, nem trilhássemos os seus caminhos, porque eles, andando segundo suas próprias invenções se desviaram da lei de Deus.

Tradições de homens. Rejeitamos, igualmente, as tradições humanas, mesmo que venham adornadas de títulos atraentes, como se fossem divinas e apostólicas, entregues à Igreja de viva voz pelos apóstolos e, como pelas mãos de varões apostólicos, aos bispos que os sucederam, as quais, quando comparadas com as Escrituras delas discrepam, e por essa discrepância revelam que, de modo nenhum, são apostólicas. Como os apóstolos não se contradisseram entre si quanto à doutrina, assim os varões apostólicos não ensinaram nada contrário aos apóstolos. Ao contrário, seria ímpio afirmar que os apóstolos, de viva voz, tivessem ensinado coisas contrárias aos seus escritos. São Paulo afirma claramente que ele ensinava as mesmas coisas em todas as igrejas (I Co 4.17). E mais: “Porque nenhuma outra cousa vos escrevemos, além das que ledes e bem compreendeis” (II Co 1.13). Também, em outra passagem, testifica que ele e seus discípulos - a saber, os varões apostólicos - andavam do mesmo modo e, ligados pelo mesmo Espírito, faziam todas as coisas (II Co 12.18). Os judeus também tiveram, no passado, as tradições dos seus anciãos, mas essas tradições foram severamente repelidas pelo Senhor, que mostrou que a sua observância põe entraves à lei de Deus, e que por meio delas Deus é em vão adorado (Mat. 15.1 ss; Mc 7.1 ss)

3. De Deus, sua unidade e trindade 

Deus é uno. Cremos e ensinamos que Deus é um em essência ou natureza, subsistindo por si mesmo, todo suficiente em si mesmo, invisível, incorpóreo, imenso, eterno, criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis, o supremo-bem, vivo, vivificador e preservador de todas as coisas, onipotente e supremamente sábio, clemente ou misericordioso, justo e verdadeiro. Abominamos a pluralidade de deuses, porque está claramente escrito: “O Senhor nosso Deus é o único Senhor” (Deut 6.4). “Eu sou o Senhor teu Deus. Não terás outros deuses diante de mim” (Êx 20.2-3). “Eu sou o Senhor, e não há outro; além de mim não há Deus. Deus justo e Salvador não há além de mim” (Is 45.5.21). “Senhor, Senhor Deus compassivo, clemente e longânimo, e grande em misericórdia e fidelidade” (Êx 34.6).

Deus é trino. Entretanto, cremos e ensinamos que o mesmo Deus imenso, uno e indiviso é inseparavelmente e sem confusão, distinto em pessoas - Pai, Filho e Espírito Santo - e, assim como o Pai gerou o Filho desde a eternidade, o Filho foi gerado por inefável geração, e o Espírito Santo verdadeiramente procede de um e outro, desde a eternidade e deve ser com ambos adorado.

Assim, não há três deuses, mas três pessoas, consubstanciais, co-eternas e co-iguais, distintas quanto às hipóstases e quanto à ordem, tendo uma precedência sobre a outra, mas sem qualquer desigualdade. Segundo a natureza ou essência, acham-se tão unidas que são um Deus, e a essência divina é comum ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.

A Escritura ensina-nos manifesta distinção de pessoas, quando o anjo diz, entre outras coisas, à bem-aventurada Virgem; “Descerá sobre ti o Espírito Santo e o poder do Altíssimo te envolverá com a sua sombra; por isso também o ente santo que há de nascer, será chamado Filho de Deus” (Luc 1.35). E, igualmente, no batismo de Cristo, ouve-se uma voz do céu a seu respeito, dizendo: “Este é o meu Filho amado” (Mat 3.17). O Espírito Santo também apareceu em forma de pomba (João 1.32). E, quando o Senhor mesmo mandou os apóstolos batizar, mandou-os batizar “em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Mat 28.19). Em outra parte do Evangelho, diz ele: “O Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome” (João 14.26). E noutro lugar: “Quando, porém, vier o Consolador, que eu vos enviarei da parte do Pai, o Espírito da verdade, que dele procede, esse dará testemunho de mim”, etc. (João 15.26). Em resumo, recebemos o Credo dos Apóstolos, porque ele nos comunica a verdadeira fé.

Heresias. Portanto, condenamos judeus e maometanos, e todos quantos blasfemam da Trindade santa e digna de adoração. Condenamos, também, todas as heresias e os heréticos que ensinam que o Filho e o Espírito Santo são Deus apenas de nome, e ainda que há algo criado e subserviente, ou subordinado a outro, na Trindade, e que nela há algo desigual, maior ou menor, corpóreo ou corporeamente concebido, diferente quanto aos costumes ou à vontade, confuso ou solitário, como se o Filho e o Espírito Santo fossem os sentimentos e propriedades de um Deus o Pai, como pensavam os monarquistas, os novacianos, Praxeas, os patripassianos, Sabélio, Paulo de Samosata, Êcio, Macedônio, os antropomorfitas, Ário e outros semelhantes.

4. Dos ídolos ou imagens de Deus, de Cristo e dos santos 

Imagens de Deus. Visto que Deus como Espírito é, em essência, invisível e imenso, não pode, certamente, ser expresso por qualquer arte ou imagem. Por essa razão, não tememos afirmar com a Escritura que imagens de Deus não passam de mentiras. Assim, rejeitamos não somente os ídolos dos gentios mas também as imagens dos cristãos.

Imagens de Cristo. Embora Cristo tenha assumo a natureza humana, não a assumiu para fornecer modelo a escultores e pintores. Afirmou que não veio “revogar a lei ou os profetas” (Mat 5.17). E as imagens são proibidas pela lei e pelos profetas (Deut 4.15; Is 44.9). Afirmou que a sua presença corporal não seria de proveito para a Igreja, e prometeu que estaria junto de nós, para sempre, pelo seu Espírito (João 16.7). Quem, pois, haveria de crer que uma sombra ou semelhança de seu corpo traria qualquer benefício para as almas piedosas? (II Co 5.5). Se ele vive em nós pelo seu Espírito, somos já os templos de Deus (I Co 3.16). Mas, “que ligação há entre o santuário de Deus e os ídolos?” (II Co 6.16).

Imagens de santos. E desde que os espíritos bem-aventurados e os santos do céu, quando viviam aqui na terra, rejeitaram qualquer culto de si mesmos (At 3.12 ss; 14.11 ss; Apoc 14.7; 22.9) e condenaram as imagens, poderá alguém achar plausível que os santos e anjos celestiais se agradem com suas imagens, diante das quais os homens se ajoelham, descobrem as cabeças e dispensam outras honras?

Para instruir os homens na religião e relembrá-los das coisas divinas e da sua salvação, o Senhor ordenou que se pregasse o Evangelho (Mc 16.15) - e não que se pintassem quadros para ensinar os leigos. Instituiu também os sacramentos, mas em nenhum lugar estabeleceu imagens.

A escritura dos leigos. Demais, para onde quer que volvamos os olhos, vemos as criaturas de Deus, vivas e verdadeiras ao nosso olhar, as quais, se bem examinadas como convém, causam ao observador uma impressão muito mais viva do que todas as imagens ou pinturas vãs, imóveis, frágeis e mortas, feitas pelos homens, das quais com razão disse o profeta: “Têm olhos, e não vêem” (Sal 115.5).

Lactâncio, Epifânio e Jerônimo. Por isso aprovamos a opinião de Lactânio, escritor antigo, que diz: “Indubitavelmente nenhuma religião existe onde há uma imagem”. Afirmamos, também, que o bem-aventurado bispo Epifânio procedeu bem quando, ao encontrar nas portas de uma igreja um véu no qual estava pintada uma figura que se dizia ser de Cristo ou de algum santo, rasgou-o e o arrancou dali, por ver, contra a autoridade da Escritura, a figura de um homem afixada na Igreja de Cristo. Por isso, ele ordenou que dali por diante tais véus, que eram contrários à nossa religião, não fossem afixados na Igreja de Cristo, mas antes fossem removidas essas coisas duvidosas, indignas da Igreja de Cristo e dos fiéis. Além disso, aprovamos esta afirmação de Santo Agostinho sobre a verdadeira religião: “Não seja a nossa religião um culto de obras humanas: os próprios artistas que as fazem são melhores do que elas; no entanto, não devemos adorá-los” (De Vera Religione, IV, 108).

5. Da adoração, do culto e da invocação de Deus por Jesus Cristo, único Mediador 

Somente Deus deve ser adorado e cultuado. Ensinamos que somente o verdadeiro Deus deve ser adorado e cultuado. Esta honra não concedemos a nenhum outro, segundo o mandamento do Senhor: “Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele darás culto” (Mat 4.10). Sem dúvida, todos os profetas censuraram severissimamente o povo de Israel todas as vezes que este adorou e cultuou deuses estranhos e não o único Deus verdadeiro. E ensinamos que Deus deve ser adorado e cultuado como ele mesmo nos ensinou a cultuá-lo, a saber, “em Espírito e em verdade” (João 4.23 ss), e não com qualquer superstição, mas com sinceridade, segundo a sua Palavra; para que, em tempo algum, não venha ele a dizer-nos: “Quem vos requereu o só pisardes os meus átrios?” (Is 1,12; Jer 6,20). São Paulo também diz: “Deus não é servido por mãos humanas, como se de alguma cousa precisasse”, etc. (At 17,25).

Só Deus deve ser invocado pela exclusiva mediação de Cristo. Em todas as crises e provações de nossa vida invocamos somente a ele e isso pela mediação de Jesus Cristo, nosso único mediador e intercessor. Eis o que nos é claramente ordenado: “Invoca-me no dia da angústia: eu te livrarei, e tu me glorificarás” (Sal 50,15). Temos uma promessa generosíssima do Senhor, que disse: “Se pedirdes alguma cousa ao Pai, ele vo-la concederá em meu nome” (João 16,23), e: “Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei” (Mat 11,28). Está escrito: “Como, porém, invocarão aquele em que não creram?” (Rom 10.14). Nós cremos em um só Deus, e só a ele invocamos, e o fazemos mediante Cristo. “Porquanto há um só Deus, diz o Apóstolo, e um só Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo, homem” (I Tim 2,5). Também se diz: “Se, todavia, alguém pecar, temos Advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o justo”, etc. (I João 2,1).

Os santos não devem ser adorados, cultuados ou invocados. Por essa razão não adoramos, nem cultuamos nem invocamos os santos dos céus, nem outros deuses, nem os reconhecemos como nossos intercessores ou mediadores perante o Pai que está no céu. Deus e Cristo, o Mediador, nos são suficientes. Nem concedemos a outros a honra que é devida somente a Deus e ao seu Filho, porque ele claramente disse: “A minha glória, pois, não a darei a outrem” (Is 42.8). E porque São Pedro disse: “Porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos”, a não ser o nome de Cristo (At 4,12). Nele, os que dão seu assentimento pela fé não buscam coisa alguma além de Cristo.

A honra devida aos santos. Entretanto, não desprezamos os santos nem os tratamos como seres vulgares. Reconhecemo-los como membros vivos de Cristo e amigos de Deus, que venceram gloriosamente a carne e o mundo. Por isso nós os amamos como irmãos e também os honramos; não, porém, com qualquer espécie de culto, mas os encaramos com apreciação e respeito e com justos louvores. Também os imitamos, pois com ardentíssimos anseios e súplicas desejamos ser imitadores da sua fé e das suas virtudes, partilhar com eles a salvação eterna, habitar eternamente com eles na presença de Deus e regozijar-nos com eles em Cristo. Neste ponto aprovamos o que diz Santo Agostinho: “Não seja a nossa religião um culto dos mortos. Pois, se viveram vidas santas, não devemos supor que estejam à procura de tais honras; ao contrário, querem que adoremos aquele por cuja iluminação eles se alegram de que sejamos conservos dos seus méritos. Devem, portanto, ser honrados pela imitação, e não adorados por religião”, etc. (De Vera Religione, LV, 108).

Relíquias dos santos. Muito menos cremos que as relíquias dos santos devem ser adoradas ou cultuadas. Aqueles santos antigos pareciam ter honrado suficientemente seus mortos, se de modo decente tinham entregado seus restos mortais à terra, depois que os espíritos subiram ao alto. E consideravam que as mais nobres relíquias de seus ancestrais eram suas virtudes, sua doutrina e sua fé, as quais, como eles as recomendavam pelo louvor dos seus mortos, assim se esforçavam para imitá-las enquanto viviam na terra.

Juramento só pelo nome de Deus. Aqueles homens antigos não juravam senão pelo nome do único Deus, Javé, como ordenava a lei divina. Como por ela é proibido jurar pelo nome de deuses estranhos (Êx 23.13; Deut 10.20), assim não juramos em nome dos santos, como se exige de nós. Rejeitamos, portanto, em todas estas questões, uma doutrina que atribui mais do que o devido aos santos que estão nos céus.

6. Da providência de Deus 

Todas as coisas são governadas pela providência de Deus. Cremos que tudo o que há no céu e na terra, e em todas as criaturas, é preservado e governado pela providência deste Deus sábio, eterno e onipotente. Davi o testifica e diz: “Excelso é o Senhor acima de todas as nações, e a sua glória acima dos céus. Quem há semelhante ao Senhor nosso Deus, cujo trono está nas alturas; que se inclina para ver o que se passa no céu e sobre a terra?” (Sal 113,4 ss). Outra vez: “Esquadrinhas... todos os meus caminhos. Ainda a palavra me não chegou à língua, e tu, Senhor, já a conheces toda” (Sal 139, 3 ss). São Paulo também testifica e declara: “Nele vivemos, e nos movemos, e existimos” (At 17, 28), e “dele e por meio dele e para ele são todas as cousas” (Rom 11, 36). Portanto Santo Agostinho, muito acertadamente e segundo a Escritura, declarou em seu livro De Agone Christi, cap. 8: “O Senhor disse: ‘Não se vendem dois pardais por um asse? e nenhum deles cairá em terra sem o consentimento de vosso Pai’” (Mat 10.29). Assim falando, ele quis mostrar que aquilo que os homens consideram de valor insignificante é governado pela onipotência de Deus. Porquanto aquele que é a verdade diz que as aves do céu são alimentadas por ele e os lírios do campo são vestidos por ele; e diz também, que os cabelos de nossa cabeça estão contados (Mat 6.26 ss).

Os Epicureus. Condenamos, portanto, os epicureus que negam a providência de Deus e todos quantos blasfemem dizendo que Deus está ocupado com os céus e nem nos vê, nem vê nossos interesses, nem cuida de nós. Davi, o rei-profeta, também os condenou, quando disse: “Senhor, até quando exultarão os perversos? Dizem: O Senhor não vê; nem disso faz caso o Deus de Jacob. Atendei, ó estúpidos dentre o povo; e vós insensatos, quando sereis prudentes? O que fez o ouvido, acaso não ouvirá? e o que formou os olhos, será que não enxerga?” (Sal 94, 3.7-9).

Os meios não devem ser desprezados. Entretanto, não desprezamos como inúteis os meios pelos quais opera a providência divina, mas ensinamos que devemos acomodar-nos a eles, na medida em que nos são recomendados na Palavra de Deus. Eis por que desaprovamos as afirmações temerárias daqueles que dizem que, se todas as coisas são geridas pela providência de Deus, então nossos esforços e diligências são inúteis. Seria o bastante deixarmos tudo ao governo da divina providência e não nos preocuparmos nem fazermos coisa alguma. São Paulo reconhecia que navegava sob a providência de Deus, que lhe dissera: “...deste testemunho a meu respeito em Jerusalém, assim importa que também o faças em Roma” (At 23.11), e em adição lhe havia prometido: “Porque nenhuma vida se perderá de dentre vós... pois nenhum de vós perderá nem mesmo um fio de cabelo” (At. 27, 22.34). Todavia, quando os marinheiros estavam pensando em abandonar o navio, ele mesmo disse ao centurião e aos soldados: “Se estes não permanecerem a bordo, vós não podereis salvar-vos” (At 27.31). Deus, que destinou a cada coisa o seu fim, ordenou o começo e os meios pelos quais a coisa atinge seu alvo. Os pagãos atribuem as coisas à fortuna cega e ao acaso incerto. No entanto, São Tiago não deseja que digamos: “Hoje, ou amanhã, iremos para a cidade tal, e lá passaremos um ano, e negociaremos e teremos lucros”, mas aconselha: “Em vez disso, deveis dizer: Se o Senhor quiser, não só viveremos, como faremos isto ou aquilo” (Tiago 4, 13.15). E Santo Agostinho diz: “Tudo o que para os homens vãos, na natureza parece acontecer por acidente, realiza simplesmente a sua Palavra, porque não acontece senão por sua ordem” (Enarrationes in Psalmos, 148). Assim, parecia acontecer por mero acaso quando Saul, enquanto procurava as jumentas de seu pai, inesperadamente se encontrou com o profeta Samuel. Mas previamente o Senhor dissera ao profeta: “Amanhã a estas horas te enviarei um homem da terra de Benjamim” (I Sam 9.16). 

7. Da criação de todas as coisas: dos anjos, do diabo e do homem 

Deus criou todas as coisas. Este Deus bom e onipotente criou todas as coisas, visíveis e invisíveis, pela sua Palavra co-eterna, e as preserva pelo seu Espírito co-eterno, como Davi testificou, quando disse: “Os céus por sua palavra se fizeram, e pelo sopro de sua boca o exército deles” (Sal 33.6). E, como diz a Escritura, tudo o que Deus fez era muito bom, e foi feito para proveito e uso do homem. Ora, afirmamos que todas aquelas coisas partiram de um princípio.

Maniqueus e Marcionitas. Portanto, condenamos os maniqueus e os marcionitas que impiamente imaginaram duas substâncias e duas naturezas, a do bem e a do mal; também dois princípios e dois deuses, um contrário ao outro, um bom e um mau.

Dos anjos e do diabo. Entre todas as criaturas, os anjos e os homens são os mais excelentes. Dos anjos declara a Santa Escritura: “Fazes a teus anjos ventos, e a teus ministros, labaredas de fogo” (Sal 104, 4). Diz ainda: “Não são todos eles espíritos ministradores enviados para serviço, a favor dos que hão de herdar a salvação?” (Heb 1, 14). Do Diabo testifica o próprio Senhor Jesus: “Ele foi homicida desde o princípio e jamais se firmou na verdade. Quando ele profere a mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira” (João 8.44). Portanto, ensinamos que alguns anjos persistiram na obediência e foram designados para fiel serviço a Deus e aos homens, mas outros caíram pela sua própria vontade e foram precipitados na ruína, tornando-se inimigos de todo o bem e dos fiéis, etc.

Do homem. Já do homem diz a Escritura que no princípio ele foi criado bom, à imagem e semelhança de Deus, que Deus o colocou no Paraíso e lhe sujeitou todas as coisas (Gén cap. 2). Isso é o que Davi magnificamente celebra no Salmo 8. Além disso, Deus lhe deu uma esposa e os abençoou. Afirmamos também que o homem consiste de duas substâncias diferentes numa pessoa: de uma alma imortal, que, quando separada do corpo, nem dorme nem morre, e de um corpo mortal que, porém, ressuscitará dos mortos no juízo final, de modo que desde então o homem todo, na vida ou na morte, viva para sempre.

As seitas. Condenamos todos os que ridicularizam ou mediante argumentos subtis põem em dúvida a imortalidade das almas, ou dizem que a alma dorme ou é parte de Deus. Em resumo, condenamos todas as opiniões de todos os homens, por mais numerosos que sejam, que ensinam diversamente do que, a respeito da criação, dos anjos e dos demônios, e do homem, nos foi ensinado pelas Santas Escrituras na Igreja apostólica de Cristo.

8. Da queda do homem, do pecado e sua causa 

A queda do homem. Desde o inicio foi o homem Por Deus criado à imagem de Deus, em justiça e santidade de verdade, bom e reto, mas, por instigação da serpente e pela sua própria culpa, ele se afastou da bondade e da retidão e tornou-se sujeito ao pecado, à morte e a várias calamidades. E qual veio ele a ser pela queda - isto é, sujeito ao pecado, à morte e a várias calamidades - tais são todos os que dele descenderam.

Pecado. Por pecado entendemos a corrupção inata do homem, que se comunicou ou propagou de nossos primeiros pais, a todos nós, pela qual nós - mergulhados em más concupiscências, avessos a todo o bem, inclinados a todo o mal, cheios de toda impiedade, de descrenças, de desprezo e de ódio a Deus - nada de bom podemos fazer, e, até, nem ao menos podemos pensar por nós mesmos. Além disso, à medida que passam os anos, por pensamentos, palavras e obras más, contrárias à lei de Deus, produzimos frutos corrompidos, dignos de uma árvore má (Mat 12,33 ss). Por essa razão, sujeitos à ira de Deus, por nossas próprias culpas, estamos expostos ao justo castigo, de modo que todos nós teríamos sido por Deus lançados fora, se Cristo, o Libertador, não nos tivesse reconduzido.

Morte. Por morte entendemos não só a morte corpórea, que todos nós teremos de experimentar uma vez, por causa dos pecados, mas também os suplícios eternos devidos aos nossos pecados e à nossa corrupção. Eis o que diz o apóstolo: “Estando vós mortos nos vossos delitos e pecados... éramos por natureza filhos da ira, como também os demais. Mas Deus, sendo rico em misericórdia... e estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo” (Ef 2.1 ss). E também: “Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram” (Rom 5.12).

Pecado original; pecados atuais. Reconhecemos, portanto, que há pecado original em todos os homens. Reconhecemos que todos os outros pecados que deste provêm são chamados, e verdadeiramente são, pecados, qualquer que seja o nome que lhes seja dado - pecados mortais, veniais ou mesmo aquele que é chamado pecado contra o Espírito Santo, que nunca é perdoado (Mc 3.29; I João 5.16). Confessamos também que os pecados não são iguais: embora surjam da mesma fonte de corrupção e incredulidade, alguns são mais graves que os outros. Como disse o Senhor, haverá mais tolerância para Sodoma do que para a cidade que rejeita a palavra do Evangelho (Mat 10.14 ss; 11.20 ss).

As seitas. Condenamos, portanto, todos os que ensinaram o contrário disto, especialmente Pelágio e todos os pelagianos, juntamente com os jovinianos, que, com os estóicos, consideravam todos os pecados como iguais. Em toda esta questão concordamos com Santo Agostinho, que das Escrituras Sagradas extraiu seu ponto de vista e por elas o defendeu. Mais ainda, condenamos Florino e Blasto, contra quem escreveu Irineu, e todos os que fazem Deus o autor do pecado.

Deus não é o autor do pecado; e até onde se pode dizer que ele endurece. Está claramente escrito: “Tu não és Deus que se agrade com a iniqüidade. Aborreces a todos que praticam iniqüidade. Tu destróis os que proferem mentira” (Sal 5.4 ss). E de novo: “Quando ele profere a mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira” (João 8.44). Além disso, há em nós suficiente pecado e corrupção, não sendo necessário que Deus em nós infunda uma nova e ainda maior depravação. Quando, portanto, se diz nas Escrituras que Deus endurece, cega e entrega a uma disposição réproba de mente, deve-se entender que Deus o faz mediante um justo juízo, como um Juiz Vingador e justo. Finalmente, sempre que na Escritura se diz ou parece que Deus faz algo mal, não se diz, por isso, que o homem não pratique o mal, mas que Deus o permite e não o impede, segundo o seu justo juízo, que poderia impedi-lo se o quisesse, ou porque ele transforma o mal do homem em bem, como fez no caso do pecado dos irmãos de José, ou porque ele próprio controla os pecados, para que não irrompam e grassem mais largamente do que convém. Santo Agostinho escreve em seu Enchiridion: “De modo admirável e inexplicável não se faz além da sua vontade aquilo que contra a sua vontade faz. Pois não se faria, se ele não o permitisse. E, no entanto, ele não o permite contra a vontade, mas voluntariamente. O bom não permitiria que se fizesse o mal, a não ser que, sendo onipotente, pudesse do mal fazer o bem”. É isso o que ele diz.

Questões curiosas. As demais questões - tais como, se Deus quis que Adão caísse, ou se o incitou à queda, ou por que não impediu a queda e outras semelhantes - nós as reconhecemos como curiosas (salvo, talvez, se a impiedade dos heréticos ou de outros homens grosseiros nos leve a explicá-las também, com base na Palavra de Deus, como freqüentemente o fizeram os piedosos doutores da Igreja), sabendo que o Senhor proibiu o homem de comer do fruto proibido e puniu sua transgressão. Sabemos também que as coisas que se fazem não são más com respeito à providência, à vontade e ao poder de Deus, mas com respeito a Satanás e à nossa vontade que se opõe à vontade de Deus.

9. Do livre arbítrio e da capacidade humana 

Nesta questão, que sempre produziu muitos conflitos na Igreja, ensinamos que se deve considerar uma tríplice condição ou estado do homem.

Qual era o homem antes da queda. Há o estado em que o homem se encontrava no princípio, antes da queda; era certamente reto e livre, de modo que podia continuar no bem ou declinar para o mal, mas inclinou-se para o mal e se envolveu a si mesmo e a toda a raça humana em pecado e morte, como se disse acima.

Qual se tornou o homem depois da queda. Depois, importa considerar qual se tornou o homem depois da queda. Sem dúvida, seu entendimento não lhe foi retirado, nem foi ele privado de vontade, nem foi transformado inteiramente numa pedra ou árvore; mas seu entendimento e sua vontade foram de tal sorte alterados e enfraquecidos que não podem mais fazer o que podiam antes da queda. O entendimento se obscureceu, e a vontade, que era livre, tornou-se uma vontade escrava. Agora ela serve ao pecado, não involuntária mas voluntariamente. Tanto é assim que o seu nome é “vontade”; não é “não – vontade”.

O homem pratica o mal por sua própria vontade. Portanto, quanto ao mal ou ao pecado, o homem não é forçado por Deus ou pelo Diabo, mas pratica o mal espontaneamente e nesse sentido ele tem arbítrio muito livre. Mas o fato de vermos, não raro, que os piores crimes e desígnios dos homens são impedidos por Deus de atingir seus propósitos não tolhe a liberdade do homem na prática do mal, mas é Deus que pelo seu próprio poder impede aquilo que o homem livremente determinou de modo diverso. Assim, os irmãos de José livremente determinaram desfazer-se dele, mas não o puderam, porque outra coisa parecia bem ao conselho de Deus.

O homem por si só não é capaz do bem. Com referência ao bem e à virtude, o entendimento do homem, por si mesmo, não julga retamente a respeito das coisas divinas. A Escritura evangélica e apostólica requer regeneração de todos aqueles de entre nós que desejamos ser salvos. Por conseguinte, nosso primeiro nascimento de Adão em nada contribui para nossa salvação. São Paulo diz: “O homem natural não aceita as cousas do Espírito de Deus”, etc. (I Co 2.14). E em outra passagem ele afirma que nós, por nós mesmos, não somos capazes de pensar nada de bom (II Co 3.5). Ora, sabe-se que a mente ou entendimento é a luz da vontade, e quando o guia é cego, é óbvio até onde a vontade poderá chegar. Por isso, o homem ainda não regenerado não tem livre arbítrio para o bem e nenhum poder para realizar o que é bom. O Senhor diz no Evangelho: “Em verdade, em verdade vos digo: Todo o que comete pecado é escravo do pecado” (João 8.34). E o apóstolo São Paulo diz: “Por isso o pendor da carne é inimizade contra Deus, pois não está sujeito à lei de Deus, nem mesmo pode estar” (Rom 8.7). O entendimento das coisas terrenas, porém, não é inteiramente nulo no homem decaído.

Compreensão das artes. Deus em sua misericórdia permitiu que permanecesse o talento natural, apesar de este distar muito daquele que existia no homem antes da queda. Deus manda o homem cultivar o seu talento e, ao mesmo tempo, lhe acrescenta dons e favores. E é manifesto que não fazemos nenhum progresso em todas as artes sem a bênção de Deus. Certamente, a Escritura atribui todas as artes a Deus; e, na verdade, até os pagãos atribuem a origem das artes a deuses, que seriam os seus inventores.

Quais são os poderes dos regenerados, e de que modo é livre o seu arbítrio. Finalmente, devemos ver se os regenerados têm e até que ponto têm livre arbítrio. Na regeneração, o entendimento é iluminado pelo Espírito Santo, para que compreenda os mistérios e a vontade de Deus. E a própria vontade não é somente mudada pelo Espírito, mas é também equipado com poderes, de modo, que ela espontaneamente deseje o bem e seja capaz de praticá-la (Rom 8.1 ss). Se não concedermos isso, negaremos a liberdade cristã e introduziremos uma servidão geral. Mas também o profeta registra o que Deus diz: “Na mente lhes imprimirei as minhas leis, também no coração lhas inscreverei” (Jer 31.33; Ez 36.26 ss). E o Senhor também diz no Evangelho: “Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” (João 8.36). E São Paulo também escreve aos filipenses: “Porque vos foi concedida a graça de padecerdes por Cristo, e não somente de crerdes nele” (Fil 1.29). E outra vez: “Estou plenamente certo de que aquele que começou boa obra em vós há de completá-la até ao dia de Cristo Jesus” (v. 6). E ainda: “Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade” (2.13).

Os regenerados operam não só passiva, mas ativamente. Entretanto, ensinamos que há duas coisas a serem observadas: Primeiro, que os regenerados, na sua eleição e operação, não agem só passiva mas ativamente. São levados por Deus a fazer por si mesmos o que fazem. Santo Agostinho muito bem afirma que “Deus é nosso ajudador. Mas ninguém pode ser ajudado, se não aquele que faz alguma coisa”. Os maniqueus despojavam o homem de toda ação e o faziam semelhante a uma pedra ou a um pedaço de pau.

O livre arbítrio é fraco nos regenerados. Segundo, nos regenerados permanece a fraqueza. Desde que o pecado permanece em nós, e nos regenerados a carne luta contra o espírito até o fim de nossa vida, eles não conseguem realizar livremente tudo o que planejaram. Isso é confirmado pelo apóstolo em Rom 7 e Gal 5. Portanto, é fraco em nós o livre arbítrio por causa dos remanescentes do velho Adão e da corrupção humana inata, que permanece em nós até o fim de nossa vida. Entretanto, desde que os poderes da carne e os remanescentes do velho homem não são tão eficazes que extingam totalmente a operação do Espírito, os fiéis são por isso considerados livres, mas de modo tal que reconhecem a própria fraqueza e não se gloriam de modo algum em seu livre arbítrio. Os fiéis devem ter sempre em mente o que Santo Agostinho tantas vezes inculca, segundo o apóstolo: “o que tendes que não recebestes? Se, pois, o recebestes, por que vos vangloriais, como se não fosse um dom?” A isso ele acrescenta que aquilo que planejamos não acontece imediatamente, pois os resultados das coisas estão nas mãos de Deus. Esta a razão por que São Paulo ora ao Senhor para promover sua viagem (Rom 1.10). E esta é também a razão pela qual o livre arbítrio é fraco.

Nas coisas externas há liberdade. Todavia, ninguém nega que nas coisas externas tanto os regenerados como os não-regenerados gozam de livre arbítrio. O homem tem em comum com os outros animais (aos quais ele não é inferior) esta natureza de querer umas coisas e não querer outras. Assim, ele pode falar ou ficar calado, sair de sua casa ou nela permanecer, etc. Contudo, mesmo aqui deve-se ver sempre o poder de Deus, pois essa foi a causa por que Balaão não pôde ir tão longe quanto desejava (Num, cap. 24), e Zacarias, ao voltar do templo, não podia falar como era seu desejo (Luc, cap. 1).

Heresias. Nesta questão, condenamos os maniqueus, os quais afirmam que o início do mal, para o homem bom, não foi de seu livre arbítrio. Condenamos, também, os pelagianos, que afirmam que um homem mau tem suficiente livre arbítrio para praticar o bem que lhe é ordenado. Ambos são refutados pela Santa Escritura, que diz aos primeiros: “Deus fez o homem reto”; e aos segundos: “Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” (João 8.36). 

10. Da predestinação de Deus e da eleição dos santos 

Deus nos elegeu pela graça. Deus, desde a eternidade, livremente e movido apenas pela sua graça, sem qualquer respeito humano, predestinou ou elegeu os santos que ele quer salvar em Cristo, segundo a palavra do apóstolo: “Ele nos escolheu nele antes da fundação do mundo” (Ef 1.4); e de novo: “... que nos salvou, e nos chamou com santa vocação; não segundo as nossas obras, mas conforme a sua própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos tempos eternos, e manifestada agora pelo aparecimento de nosso Salvador Cristo Jesus” (II Tim 1.9-10).

Somos eleitos ou predestinados em Cristo. Portanto, não foi sem medo, embora não por qualquer mérito nosso, mas em Cristo e por causa de Cristo que Deus nos elegeu, para que aqueles que agora se encontram enxertados em Cristo pela fé também sejam eleitos, mas sejam rejeitados aqueles que estão fora de Cristo, segundo a palavra do apóstolo: “Examinai-vos a vós mesmos se realmente estais na fé; provai-vos a vós mesmos. Ou não reconheceis que Jesus Cristo está em vós? Se não é que já estais reprovados” (II Co 13.5).

Somos eleitos para um fim determinado. Finalmente, os santos são eleitos em Cristo por Deus para um fim determinado, que o apóstolo esclarece, quando diz: “Ele nos escolheu nele antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele; e em amor nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo... para o louvor da glória de sua graça” (Ef 1.4-6).

Devemos bem esperar acerca de todos. E, embora Deus conheça os que são seus, e nalgum lugar se faça menção do reduzido número dos eleitos, devemos, contudo, bem esperar acerca de todos, e não julgar apressadamente nenhum homem como rejeitado. São Paulo diz aos filipenses: “Dou graças ao meu Deus por tudo que recordo de vós” (ora, ele fala de toda a Igreja dos filipenses), “pela vossa cooperação no Evangelho... Estou plenamente certo de que aquele que começou boa obra em vós há de completá-la até o dia de Cristo Jesus” (Fil 1.3-7).

Sobre se são poucos os eleitos. E, quando perguntaram ao Senhor se eram poucos os que seriam salvos, ele não respondeu que poucos ou muitos seriam salvos ou condenados, mas antes exortou todo homem a “esforçar-se por entrar pela porta estreita” (Luc 13.24). É como se dissesse: “Não vos compete inquirir com muita curiosidade acerca dessas questões, mas antes esforçar-vos por entrar no céu pelo caminho estreito”.

O que deve ser condenado nesse caso. Por isso, não aprovamos as afirmações ímpias de alguns que dizem: “Poucos são os eleitos, e, como eu não sei se estou no número desses poucos, não me privarei dos prazeres”. Outros dizem: “Se sou predestinado ou eleito por Deus, nada me impedirá da salvação, já certamente determinada, seja o que for que eu fizer. Mas, se estou no número dos rejeitados, nenhuma fé ou arrependimento poderá valer-me, visto que a determinação de Deus não pode ser mudada. Portanto, todas as doutrinas e advertências são inúteis”. Mas o ensino do apóstolo contradiz estes homens: “O servo do Senhor deve ser apto para instruir... disciplinando com mansidão os que se opõem, na expectativa de que Deus lhes conceda não só o arrependimento ... livrando-se eles dos laços do diabo, tendo sido feitos cativos por ele, para cumprirem a sua vontade” (II Tm 2.24-26).

As admoestações não são inúteis pelo fato de a salvação vir da eleição. Santo Agostinho também mostra que devem ser pregadas tanto a graça da livre eleição e predestinação como também as admoestações e doutrinas da salvação (De Bono Perseverantiae, cap. 14 ss),

Se somos eleitos. Condenamos, portanto, aqueles que, fora de Cristo, perguntam se são eleitos, e o que sobre eles decretou Deus antes de toda a eternidade, pois deve ser ouvida a pregação do Evangelho e deve-se crer nele, e deve-se ter como fora de dúvida que, se alguém crê e está em Cristo, é eleito. Com efeito, o Pai nos revelou em Cristo o eterno propósito da sua predestinação, como ainda há pouco expus, pelo que diz o apóstolo, em II Tim 1.9-10. Deve-se, pois, ensinar e antes de tudo considerar quão grande amor do Pai para conosco nos foi revelado em Cristo. Devemos ouvir o que o próprio Senhor diariamente nos prega no Evangelho, como ele nos chama e diz: “Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei” (Mat 11.28); “Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho Unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (João 3.16). E ainda: “Não é a vontade de vosso Pai celeste que pereça um só destes pequeninos” (Mat 18.14).

Seja, pois, Cristo o espelho, no qual contemplemos a nossa predestinação. Teremos um testemunho bastante claro e seguro de que estamos inscritos no Livro da Vida, se tivermos comunhão com Cristo, e se ele for nosso e nós dele em verdadeira fé.

Tentação sobre a predestinação. Na tentação sobre a predestinação, que é, talvez, mais perigosa do que qualquer outra, console-nos o fato de que as promessas de Deus são universais para os fiéis, pois ele diz: “Pedi, e dar-se-vos-á... Pois todo o que pede recebe” (Luc 11.9-10). É, finalmente, o que pedimos com toda a Igreja de Deus: “Pai nosso que nos céus” (Mat 6.9). Fomos enxertados no corpo de Cristo, pelo batismo, e da sua carne e do seu sangue nos alimentamos freqüentemente em sua Igreja, para a vida eterna. Fortalecidos por essas bênçãos, segundo o preceito de São Paulo recebemos ordem de operar a nossa salvação com temor e tremor.

11. De Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, único Salvador do mundo 

Cristo é verdadeiro Deus. Além disso, ensinamos que o Filho de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo, foi, desde a eternidade, predestinado ou pré-ordenado pelo Pai para ser o Salvador do Mundo. E cremos que ele nasceu, não somente quando da Virgem Maria assumiu a carne, nem apenas antes que se lançassem os fundamentos do mundo, mas antes de toda a eternidade e certamente pelo Pai, de um modo inexprimível. Isaías diz: “E da sua linhagem quem dela cogitou?” (cap. 53.8). E Miquéias diz “E cujas origens são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade” (Miq 5.2). Também São João disse no Evangelho: “No principio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”, etc. (cap. 1.1). Portanto, quanto à sua divindade, o Filho é co-igual e consubstancial com o Pai; verdadeiro Deus (Fil 2.11), não de nome ou por adoção ou por qualquer dignidade, mas em substância e natureza, como disse o apóstolo São João: “Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna” (I João 5.20). São Paulo também diz: “A quem constituiu herdeiro de todas as cousas, pelo qual também fez o universo. Ele, que é o resplendor da glória e a expressão exata do seu ser, sustentando todas as cousas pela palavra do seu poder” (Heb I.2 ss). E no Evangelho o Senhor mesmo também disse: “Glorifica-me, ó Pai, contigo mesmo, com a glória que eu tive junto de ti, antes que houvesse mundo” (João 17.5). Em outro lugar do Evangelho também está escrito: “Os judeus ainda mais procuravam matá-lo, porque... também dizia que Deus era seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus” (João 5.18).

As seitas. Abominamos, pois, a doutrina ímpia de Ário e de todos os arianos contra o Filho de Deus, e especialmente as blasfêmias do espanhol, Miguel Serveto, e de todos os servetanos, que Satanás, por meio deles, retirou do inferno, por assim dizer, e vai espalhando por todo o mundo, audaciosa e impiamente.

Cristo é verdadeiro homem, tendo verdadeira carne. Cremos também e ensinamos que o eterno Filho do eterno Deus se fez Filho do homem, da semente de Abraão e David, não com concurso carnal do homem, como diz Ébion, mas concebido do Espírito Santo com toda a pureza e nascido da sempre virgem Maria, como a história evangélica cuidadosamente nos explica (Mat, cap.1). E São Paulo diz: “Ele não assumiu a natureza de anjos, mas a da semente de Abraão”. Também o apóstolo São João diz que todo aquele que não crê que Jesus Cristo veio em carne não é de Deus. Portanto, a carne de Cristo não era nem imaginária nem trazido do céu, como erradamente sonhavam Valentino e Márcion.

Alma racional em Cristo. Além disso, nosso Senhor Jesus Cristo não possuiu uma alma desprovida de percepção e de razão, como pensava Apolinário, nem carne sem alma, como ensinava Eudômio, mas alma com sua razão e carne com seus sentidos, pelos quais por ocasião de sua paixão ele suportou dores reais, como ele mesmo testifica quando diz: “A minha alma está profundamente triste até à morte” (Mat 26.38); “Agora está angustiada a minha alma” (João 12.27).

Duas naturezas em Cristo. Reconhecemos, portanto, duas naturezas ou substâncias, a divina e a humana, num e no mesmo Senhor nosso Jesus Cristo (Heb, cap. 2). E dizemos que elas estão ligadas e unidas uma com a outra de tal modo que não foram absorvidas, ou confundidas, ou misturadas, mas unidas ou integradas numa pessoa - com as propriedades das naturezas intactas e permanentes.

Não dois, mas um só Cristo. Assim, não adoramos dois, mas um Cristo, o Senhor, um verdadeiro Deus e verdadeiro homem, segundo a natureza divina, consubstancial com o Pai, e segundo a natureza humana, consubstancial com os homens e semelhante a nós em todas as coisas, excepto no pecado (Heb 4.15).

As seitas. Certamente abominamos o dogma nestoriano, que de um Cristo faz dois e dissolve a união da Pessoa. Semelhantemente, execramos totalmente a loucura de Eutiques e dos monotelitas ou monofisitas, que destrói a propriedade da natureza humana.

A natureza divina de Cristo não sofreu e a humana não está em toda a parte. Portanto, de modo nenhum ensinamos que a natureza divina em Cristo sofreu, ou que Cristo em sua natureza humana ainda está neste mundo e ainda em toda parte. Pois nem pensamos nem ensinamos que a realidade do corpo de Cristo cessou depois de sua glorificação, ou que foi deificado e deificado de tal modo que ele tenha deposto as suas propriedades com respeito ao corpo e à alma, e estes se tenham mudado inteiramente em uma natureza divina e passado a ser uma substância una.

As seitas. Por isso, de maneira nenhuma aprovamos ou aceitamos as argúcias sem argúcia, intrincadas e obscuras, de Schwenkfeldt e de semelhantes dizedores de sutilezas, nem suas dissertações pouco consistentes sobre essa questão, nem somos schwenkfeldianos.

Nosso Senhor verdadeiramente sofreu. Cremos, além disso, que nosso Senhor Jesus Cristo verdadeiramente sofreu e morreu por nós em carne, como diz São Pedro (I Ped 4.1). Abominamos a impiíssima loucura dos jacobitas e de todos os turcos, que blasfemam do sofrimento do Senhor. Ao mesmo tempo, não negamos que o Senhor da glória foi crucificado por nós, segundo as palavras de São Paulo (I Co 2.8).

Comunicação de propriedades de linguagem. Aceitamos e aplicamos pia e respeitosamente a comunicação de propriedades de linguagem derivada da Escritura e usada por toda a antiguidade para explicar e reconciliar passagens aparentemente contraditórias.

Cristo verdadeiramente ressuscitou dos mortos. Cremos e ensinamos que o mesmo Jesus Cristo nosso Senhor, em sua verdadeira carne na qual fora crucificado e morrera, ressuscitou dos mortos, e que não foi outra carne que ressuscitou, mas a que foi sepultada, nem foi o espírito que subiu ao alto em vez da carne, mas ele reteve seu verdadeiro corpo. Portanto, ainda que os seus discípulos pensassem ver o espírito do Senhor, ele lhes mostrou as mãos e os pés marcados realmente com os sinais dos cravos e das feridas, e ajuntou: “Vede as minhas mãos e os meus pés, que sou eu mesmo, apalpai-me e verificam, porque um espírito não tem carne nem ossos, como vedes que eu tenho” (Luc 24-39).

Cristo verdadeiramente subiu ao céu. Cremos que nosso Senhor Jesus Cristo, em sua própria carne, subiu acima de todos os céus visíveis ao supremo céu, isto é, à habitação de Deus e dos bem-aventurados, à destra de Deus o Pai. Embora isso signifique participação igual em glória e majestade, considera-se, contudo, também como um lugar definido, acerca do qual o Senhor, falando no Evangelho, diz: “Vou preparar-vos lugar” (João 14.2). O apóstolo São Pedro também diz: “Ao qual é necessário que o céu receba até aos tempos da restauração de todas as cousas” (Act 3.21). E do céu o mesmo Cristo retomará para o juízo, quando a impiedade no mundo estiver no seu máximo e quando o Anticristo, tendo corrompido a verdadeira religião, tiver envolvido todas as coisas com superstição e impiedade, e tiver cruelmente assolado a Igreja com sangue e fogo (Dn, cap. 11). Mas Cristo voltará para reclamar os seus, e pela sua vinda destruir o Anticristo e julgar os vivos e os mortos (Act 17,31). s mortos ressuscitarão (I Tes 4.14 ss), e os que naquele dia (que é desconhecido de todas as criaturas - Mc 13.32) estiverem vivos serão transformados “num abrir e fechar de olhos”, e todos os fiéis serão arrebatados ao encontro de Cristo nos ares, para assim entrarem com ele nas benditas mansões e viverem para sempre (I Co 15.51 ss). Mas os incrédulos ou os ímpios descerão com os demônios para o inferno a fim de arderem para sempre e nunca serem libertados dos tormentos (Mat 25.46).

As seitas. Condenamos, portanto, todos os que negam a ressurreição real da carne (II Tim 2.18), ou que, com João de Jerusalém, contra quem escreveu São Jerônimo, não pensem corretamente acerca dos corpos glorificados. Condenamos também os que ensinam que os demônios e todos os ímpios serão um dia salvos, e que haverá um fim dos castigos. O Senhor declarou com clareza: “Onde não lhes morre o verme, nem o fogo se apaga” (Mc 9.44). Condenamos, além disso, os sonhos judaicos de que haverá uma idade áurea na terra antes do Dia do Juízo, e que os piedosos, tendo subjugado todos os seus inimigos ímpios, entrarão na posse de todos os reinos do mundo. Pois a verdade evangélica em Mat, caps. 24 e 25, e Lucas, cap. 18, e o ensino apostólico em II Tes, cap. 2, e II Tim, caps. 3 e 4, apresentam coisa inteiramente diversa.

O fruto da morte e ressurreição de Cristo. Além do mais, pela sua paixão e morte e tudo o que, em sua carne e na sua vinda, ele fez e suportou por nossa causa nosso Senhor reconciliou o Pai celestial com todos os fiéis, expiou o pecado, desarmou a morte, arruinou a condenação e o inferno, e, pela sua ressurreição dos mortos, trouxe de novo e restituiu a vida e a imortalidade. Ele é a nossa justiça, a nossa vida e ressurreição, em uma palavra, a plenitude e perfeição de todos os fiéis, a salvação e a mais completa suficiência. O apóstolo diz: “Aprouve a Deus que nele residisse toda a plenitude”, e “Viestes à plenitude da vida nele” (Cl caps. l e 2).

Jesus Cristo é o único Salvador do mundo, e o verdadeiro Messias esperado. Ensinamos e cremos que este Jesus Cristo, nosso Senhor, é o único e eterno Salvador do gênero humano, e também do mundo inteiro, em quem pela fé se salvaram todos os que antes da Lei, sob a Lei e sob o Evangelho foram salvos, e em quem se salvarão todos os que ainda vierem a salvar-se até o fim do mundo. É o próprio Senhor quem diz no Evangelho: “O que não entra pela porta no aprisco das ovelhas, mas sobe por outra parte, esse é ladrão e salteador ... Eu sou a porta das ovelhas” (João 10.1 e 7). E também em outro lugar, no mesmo Evangelho: “Abraão... viu o meu dia e regozijou-se” (cap. 8.56). O apóstolo São Pedro também diz: “Não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos”. Cremos, portanto, que seremos salvos mediante a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, como nossos pais o foram (Act 4.12; 10.43; 15.1 1). São Paulo também diz: “Todos eles comeram de um só manjar espiritual, e beberam da mesma fonte espiritual; porque bebiam de uma pedra espiritual que os seguia. E a pedra era Cristo” (I Co 10.3 ss). E assim lemos o que João diz: Cristo era o “Cordeiro que foi morto, desde a fundação do mundo” (Apoc 13.8), e João Baptista testificou que Cristo é “o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (João 1.29). Eis por que professamos e pregamos, com toda a clareza, que Jesus Cristo é o único Redentor e Salvador do mundo, o Rei e o Sumo - Sacerdote, o verdadeiro Messias esperado, aquele santo e bendito que todos os tipos da lei e todos os vaticínios dos profetas prefiguraram e prometeram; e que Deus o designou anteriormente e no-lo enviou, de modo que não devemos esperar nenhum outro. Nem nos resta agora outra coisa que darmos a Cristo toda a glória, nele crermos, somente nele descansarmos, desprezando e rejeitando todas as demais ajudas na vida. Com efeito, decaíram da graça e tornam Cristo vão para si todos os que buscam a salvação em qualquer outra coisa que não somente em Cristo (Gal 5.4).

Os credos recebidos de quatro concílios. E, para dizer muito em poucas palavras, cremos de todo o coração, e livremente confessamos à viva voz, tudo o que foi definido com fundamento nas Escrituras Sagradas a respeito do mistério da Encarnação de nosso Senhor Jesus Cristo, compreendido nos Credos e decretos dos quatro primeiros venerandos sínodos reunidos em Niceia, Constantinopla, Éfeso e Calcedônia - juntamente com o Credo do bem-aventurado Atanásio, e todos os credos similares; e condenamos tudo o que for contrário a eles.

As seitas. E dessa maneira mantemos inviolada ou intacta a fé cristã, ortodoxa e católica, sabendo que nada se contêm nos credos atrás citados que não seja conforme com a Palavra de Deus, e que não contribua, ao mesmo tempo, para uma exposição pura da fé.

12. Da lei de Deus 

A vontade de Deus nos é exposta na lei de Deus. Ensinamos que a vontade de Deus nos é exposta na Lei de Deus: o que ele quer ou não quer que façamos, o que é bom e justo, ou o que é mau e injusto. Portanto, confessamos que a Lei é boa e santa.

A lei natural. Esta lei foi escrita nos corações dos homens pelo dedo de Deus (Rom 2.15), e é chamada a lei natural; foi também esculpida pelo dedo de Deus nas duas tábuas de Moisés e mais pormenorizadamente exposta nos livros de Moisés (Êx 20.1 ss; Deut 5.6 ss). Para maior clareza, distinguimos: a lei moral contida no Decálogo ou nas duas Tábuas e expostas nos livros de Moisés; a lei cerimonial, que determina as cerimônias e o culto de Deus; e a lei judiciária, que versa questões políticas e domésticas.

A lei é completa e perfeita. Cremos que toda a vontade de Deus e todos os preceitos necessários a cada esfera da vida são nesta lei ensinados com toda a plenitude. De outro modo o Senhor não nos teria proibido de adicionar-lhe ou de subtrair-lhe qualquer coisa; nem nos teria mandado andar num caminho reto diante desta Lei, sem dela nos declinarmos para a direita ou para a esquerda (Deut 4.2; 12.32, 5.32, cf. Num 20-17 e Deut 2.27).

Porque foi dada a lei. Ensinamos que esta Lei não foi dada aos homens para que fôssemos justificados pela sua observância, mas antes para que, pelo seu ensino, conhecêssemos nossa fraqueza, nosso pecado e condenação e, perdendo a confiança em nossas forças, nos convertêssemos a Cristo pela fé. O apóstolo diz claramente: “A Lei suscita a ira”; “pela Lei vem o pleno conhecimento do pecado” (Rom 4.15; 3.20); “porque, se fosse promulgada uma Lei que pudesse dar vida, a justiça, na verdade seria procedente da Lei; mas a Escritura encerrou tudo sob o pecado, para que mediante a fé em Jesus Cristo fosse a promessa concedida aos que crêem... De maneira que a Lei nos serviu de aio para nos conduzir a Cristo, a fim de que fôssemos justificados por fé” (Gal 3.21 ss).

A carne não cumpre a lei. Ninguém poderia ou pode satisfazer a Lei de Deus ou cumpri-la, por causa de fraqueza da nossa carne que adere e permanece em nós até nosso último suspiro. Outra vez diz o apóstolo: “O que fora impossível à Lei, no que estava enferma pela carne, isso fez Deus enviando o seu próprio Filho em semelhança de carne pecaminosa e no tocante ao pecado” (Rom 8.3). Portanto, Cristo é o aperfeiçoador da Lei e o nosso cumprimento dela (Rom 10.4), o qual, com o fim de remover a maldição da Lei, foi feito maldição por nós (Gal 3.13). Assim, ele nos comunica, pela fé, o seu cumprimento da Lei, e a sua justiça e obediência nos são imputadas.

Até que ponto foi a lei ab-rogada. A Lei de Deus é, pois, ab-rogada na medida em que ela não mais nos condena, nem opera ira em nós. Estamos debaixo da graça e não debaixo da Lei. Além disso, Cristo cumpriu todas as formas da Lei. Daí, vindo o corpo, cessaram as sombras, de modo que agora em Cristo temos a verdade e toda a plenitude. Contudo, de modo nenhum rejeitamos por isso a Lei. Lembramo-nos das palavras do Senhor, que disse: “Não vim para revogar, vim para cumprir” (Mat 5.17). Sabemos que na Lei nos são ensinados os padrões de virtudes e vícios. Sabemos que a Lei escrita, quando explicado pelo Evangelho, é útil à Igreja, e que, portanto, sua leitura não deve ser excluída da Igreja. E, embora a face de Moisés estivesse recoberta com um véu, no entanto o apóstolo diz que o véu foi retirado e abolido por Cristo.

As seitas. Condenamos tudo o que os heréticos, antigos e modernos, ensinaram contra a Lei.

13. Do Evangelho de Jesus Cristo, das promessas, do espírito e da letra 

Os antigos tiveram promessas evangélicas. O Evangelho opõe-se à Lei. A Lei opera a ira e anuncia a maldição, enquanto o Evangelho prega a graça e a bênção. São João diz: “Porque a Lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo” (João 1.17). Não obstante, é perfeitamente certo que aqueles que viveram antes da Lei e sob a Lei não estavam totalmente destituídos do Evangelho. Tinham insignes promessas evangélicas, tais como estas: “A semente da mulher te ferirá a cabeça” (Gen 3.15). “Nela serão benditas todas as nações da terra” (Gen 22.18). “O cetro não se arredará de Judá ... até que venha Silo” (Gen 49.10). “O Senhor teu Deus te suscitará um profeta do meio de ti, de teus irmãos” (Deut 18.15; At 3.22) etc.

Promessas dúplices. Reconhecemos que duas espécies de promessas foram reveladas aos antigos, como também a nós. Algumas eram de coisas presentes ou terrenas, tais como as promessas da Terra de Canaã e de vitórias, e como, ainda hoje, as promessas do pão quotidiano. Outras eram naquela ocasião, e são ainda agora, de coisas celestiais e eternas, como a graça divina, a remissão de pecados, a vida eterna por meio da fé em Jesus Cristo.

Os patriarcas tiveram promessas não só carnais, mas também espirituais. Os antigos não tiveram, em Cristo, apenas promessas externas ou terrenas, mas também espirituais e celestiais. São Pedro diz: “Foi a respeito desta salvação que os profetas indagaram e inquiriram, os quais profetizaram acerca da graça a vós outros destinada” (I Pe 1.10). Donde também o apóstolo São Paulo diz: “O Evangelho de Deus... foi... outrora prometido por intermédio dos seus profetas nas Sagradas Escrituras” (Rom 1.2). Por isso é bem claro que os antigos não foram inteiramente destituídos de todo o Evangelho.

Que é propriamente o Evangelho? E, embora nossos pais tivessem dessa maneira, nos escritos dos profetas, o Evangelho, pelo qual alcançaram a salvação em Cristo pela fé, contudo, o que se chama propriamente “Evangelho” são as notícias alegres e felizes pelas quais, primeiro por João Baptista, depois por Cristo, o Senhor, e depois pelos apóstolos e seus sucessores, se anunciou aos homens que Deus já realizou o que ele prometera, desde o princípio do mundo, e nos mandou, ou melhor nos deu o seu único Filho e nele a reconciliação com o Pai, a remissão dos pecados, toda a plenitude e a vida eterna. Portanto, a história apresentada pelos quatro evangelistas, explicando como isso foi realizado ou cumprido por Cristo, o que Cristo ensinou e praticou, e que aqueles que crêem nele têm toda a plenitude, e exatamente o que se chama “Evangelho”. A Pregação e os escritos apostólicos, nos quais os apóstolos nos expõem como o Filho nos foi dado pelo Pai, e nele tudo o que diz respeito à vida e à salvação, são também o que se chama corretamente “doutrina evangélica”, de modo que ainda hoje, se sinceramente pregada, não perde o direito a tão preclara designação.

Do espírito e da letra. Essa mesma pregação do Evangelho é também chamada pelo apóstolo “o espírito” e “o ministério do espírito”, porque pela fé ela se torna eficaz e viva nos ouvidos, ou melhor, nos corações dos crentes iluminados pelo Espírito Santo (II Co 3.6). A letra, que se opõe ao Espírito, significa tudo o que é externo, mas especialmente a doutrina da Lei, que, sem o Espírito e a fé, produz ira e excita o pecado nas mentes daqueles que não têm uma fé viva. Por isso o apóstolo chama a isso «o ministério da morte». Aqui é pertinente a palavra do apóstolo: “A letra mata, mas o Espírito vivifica”. Falsos apóstolos também pregavam um Evangelho corrompido, misturando-lhe a Lei, como se sem a Lei Cristo não pudesse salvar.

As seitas. Assim, afirmavam os ebionitas, descendentes espirituais do herege Ébion, e os nazaritas, que anteriormente eram chamados mineus. A todos estes nós condenamos, e pregamos ao mesmo tempo o puro Evangelho, ensinando que os crentes são justificados só pelo Espírito, e não pela Lei. Uma exposição mais detalhada deste assunto virá sob o título de “justificação”.

O ensino do Evangelho não é novo, mas muito antigo. Embora o ensino do Evangelho, comparado com o dos fariseus sobre a Lei, tenha parecido ser uma nova doutrina quando pregado por Cristo a primeira vez, o que também Jeremias profetizou a respeito do Novo Testamento, contudo, ele, na realidade não só era como ainda é, uma velha doutrina (que hoje ela é chamada nova pelos papistas, quando comparada com a doutrina agora recebida entre eles), mas na verdade é a mais antiga de todas no mundo. Com efeito Deus predestinou desde a eternidade salvar o mundo por Cristo, e manifestou ao mundo, através do Evangelho, esta sua predestinação e o seu conselho eterno (II Tim 2.9 ss). Disso é evidente que a religião e a doutrina evangélica, entre quantas já existiram, existem e virão a existir, é a mais antiga de todas. Por isso, afirmamos que todos os que dizem que a religião e a doutrina evangélica é uma fé surgida recentemente, e que não tem mais que trinta anos de existência, erram vergonhosamente e falam coisas indignas do conselho eterno de Deus. A eles se aplica a palavra de Isaías, o profeta: “Ai dos que ao mal chamam bem, que fazem da escuridade luz, e da luz escuridade; põem o amargo por doce, e o doce por amargo!” (Is 5.20).

14. Do arrependimento e da conversão do homem 

A doutrina do arrependimento está ligada ao Evangelho. Pois assim diz o Senhor no Evangelho: “Que em seu nome se pregasse arrependimento para remissão de pecados a todas as nações” (Luc 24.47).

Que é arrependimento? Por arrependimento entendemos uma volta atrás da mente no pecador provocado pela Palavra do Evangelho e pelo Espírito Santo, e recebida pela verdadeira fé, com o que o pecador imediatamente reconhece a sua corrupção inata e todos os seus pecados denunciados pela Palavra de Deus; e entristece-se por eles em seu coração, e não apenas os lamenta e francamente confessa diante de Deus com um sentimento de vergonha, mas também com indignação os abomina; cuidando agora zelosamente de emendar-se, num esforço constante em busca da inocência e da virtude, no qual esforço se exercita santamente em todo o resto de sua vida.

O arrependimento é verdadeira conversão a Deus. E este é o verdadeiro arrependimento, uma sincera volta para Deus e para todo o bem, e uma profunda aversão ao Diabo e a todo o mal.

O arrependimento é dom de Deus. Dizemos expressamente que este arrependimento é puro dom de Deus e não uma realização de nossas forças. O apóstolo ordena a um fiel ministro que diligentemente instrua aqueles que se opõem à verdade, “na expectativa de que Deus lhes conceda o arrependimento para conhecerem plenamente a verdade” (II Tim 2.25). Lamenta os pecados cometidos. Aquela mulher que lavou os pés do Senhor com suas lágrimas, e São Pedro, que chorou amargamente e lamentou ter negado o Senhor (Luc 7.38; 22.62) mostram claramente como deve ser o espírito de um homem arrependido, lamentando seriamente os pecados que cometeu. Confessa os pecados a Deus. E o filho pródigo e o publicano no Evangelho, quando comparados com o fariseu, apresentam-nos as fórmulas mais adequadas de confessar os nossos pecados a Deus. O primeiro disse: “Pai, pequei contra o céu e diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus trabalhadores” (Luc 15.18 ss). E o segundo, não ousando erguer os olhos ao céu, bate no peito, dizendo: “Ó Deus, sê propício a mim, pecador!” (cap. 18.13). E não temos duvida de que foram aceitos em graça por Deus, pois o apóstolo São João diz: “Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça. Se dissermos que não temos cometido pecado, fazemo-lo mentiroso e a sua palavra não está em nós” (I João 1.9 ss).

Confissão e absolvição sacerdotais. Cremos que é suficiente esta sincera confissão feita só a Deus, ou particularmente entre Deus e o pecador, ou publicamente na Igreja quando se faz a confissão geral de pecados, e que para se obter perdão de pecados não é necessário ninguém confessar seus pecados a um sacerdote, sussurrando-lhe aos ouvidos, para dele ouvir em troca a absolvição, com a imposição das mãos, porque não existe nenhum mandamento nem exemplo disso Santas Escrituras. David testifica e diz: “Confessei-te o meu pecado e a minha iniqüidade não mais ocultei. Disse: Confessarei ao Senhor as minhas transgressões; e tu perdoaste a iniqüidade do meu pecado” (Sal 32.5). E o Senhor, ao ensinar-nos a orar e ao mesmo tempo a confessar nossos pecados, disse: “Pai nosso que estás nos céus... perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado aos nossos devedores” (Mat 6.9 e 12). Portanto, é necessário que confessemos nossos pecados a Deus, nosso Pai, e nos reconciliemos com nosso próximo, se o ofendemos. Quanto a esse tipo de confissão, o apóstolo São Tiago diz: “Confessai, pois, os vossos pecados uns aos outros” (Tiag 5.16). Se, contudo, alguém se acha acabrunhado pelo peso de seus pecados e por tentações que o põem perplexo, e procurar conselho, instrução e conforto individualmente, ou de um ministro da Igreja, ou de um outro irmão instruído na Lei de Deus, não desaprovamos. Por outro lado, aprovamos plenamente a confissão de pecados geral e pública, que usualmente se realiza na Igreja e em reuniões de culto, como notamos acima, tanto mais que isso está de acordo com a Escritura.

Das chaves do Reino do Céu. Quanto às chaves do Reino de Deus, que o Senhor entregou aos apóstolos, muitos tagarelam inúmeras coisas espantosas, e com elas forjam espadas, lanças, cetros e coroas, e pleno poder sobre os maiores reinos, e, afinal, sobre almas e corpos. Julgando de modo singelo, segundo a Palavra do Senhor, dizemos que todos os que são legitimamente chamados ministros possuem e exercem as chaves, ou o uso das chaves, quando anunciam o Evangelho; isto é, quando ensinam, exortam, confortam, repreendem e exercem a disciplina sobre o povo confiado aos seus cuidados.

Abrir e fechar (o Reino). Desse modo abrem o Reino dos Céus aos obedientes e o fecham aos desobedientes. O Senhor prometeu essas chaves aos apóstolos em Mat, cap.16, e as deu em João, cap. 20, Marcos, cap. 16 e Lucas, cap.24, quando enviou seus discípulos e os mandou pregar o Evangelho a todo o mundo, e perdoar pecados.

O ministério da reconciliação. Na carta aos Coríntios diz o apóstolo que o Senhor deu o ministério da reconciliação aos seus ministros (II Co 5.18 ss). E ele explica qual é ele, dizendo que é a pregação ou o ensino da reconciliação. E, tornando suas palavras ainda mais claras, acrescenta que os ministros de Cristo desempenham o ofício de embaixadores em nome de Cristo, como se Deus mesmo por meio deles exortasse o povo a se reconciliar com Deus, sem dúvida nenhuma pela fiel obediência. Portanto, exercem o poder das chaves quando persuadem os homens à fé e ao arrependimento. Assim, reconciliam os homens com Deus.

Os ministérios proclamam a remissão de pecados. Assim, eles perdoam pecados. Abrem, assim, o Reino dos Céus e nele introduzem os crentes: mui diferentemente daqueles de quem o Senhor fala no Evangelho: “Ai de vós, intérpretes da lei! porque tomastes a chave da ciência; contudo, vós mesmos não entrastes e impedistes os que estavam entrando” (Luc 11.52).

Como os ministros absolvem. Os ministros, portanto, absolvem correta e eficazmente quando pregam o Evangelho de Cristo e nele a remissão de pecados, que é prometida a todo aquele que crê, assim como cada um é batizado, e quando testificam que ela pertence a cada um particularmente. E não julgamos que esta absolvição se torne mais eficaz por ser murmurada no ouvido de alguém ou individualmente sobre a cabeça de alguém. Pensamos, contudo, que a remissão de pecados pelo sangue de Cristo deve ser diligentemente anunciada, e que cada um deve ser avisado de que o perdão de pecados lhe pertence.

Diligência na renovação da vida. Ademais os exemplos do Evangelho ensinam-nos quão vigilantes e diligentes devem ser os arrependidos no esforço de renovação de vida e na mortificação do homem velho e despertamento do homem novo. O Senhor disse ao paralítico que ele curara: “Olha que já estás curado; não peques mais, para que não te suceda cousa pior” (João 5.14). De igual modo, disse à adúltera a quem libertou: “Vai, e não peques mais” (cap. 8.11). Sem dúvida, por estas palavras ele não quis dizer que o homem, alguma vez, enquanto ainda vive nesta carne, não peque; mas recomenda vigilância cuidadosa e diligência para que nos esforcemos de todos os modos e supliquemos a Deus em nossas orações para não cairmos nos pecados dos quais como que ressuscitamos, e para não sermos vencidos pela carne, pelo mundo e pelo Diabo. Zaqueu, o publicano, recebido pelo Senhor em graça, exclama no Evangelho: “Senhor, resolvo dar aos pobres a metade dos meus bens; e, se nalguma cousa tenho defraudado alguém, restituo quatro vezes mais” (Luc 19.8). Portanto, do mesmo modo pregamos que restituição e misericórdia, e, até, esmolas, são necessárias para aqueles que verdadeiramente se arrependem, e exortamos todos os homens em toda parte com as palavras do apóstolo: “Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo mortal, de maneira que obedeçais às suas paixões; nem ofereçais cada um os membros do seu corpo ao pecado como instrumentos de iniqüidade; mas oferecei-vos a Deus como ressurrectos dentre os mortos, e os vossos membros a Deus como instrumentos de justiça” (Rom 6.12 ss).

Erros. Por isso, condenamos todas as afirmações ímpias de alguns que fazem mau uso da pregação do Evangelho e dizem: “É fácil retornar a Deus; Cristo expiou todos os pecados: é fácil o perdão dos pecados; portanto, que mal há em pecar? Nem precisamos estar muito preocupados acerca do arrependimento, etc.” Não obstante, ensinamos sempre que o acesso a Deus está aberto a todos os pecadores, e que ele perdoa todos os pecados a todos os que crêem, exceto o pecado contra o Espírito Santo (Mc 3.29).

As seitas. Eis por que condenamos os antigos e modernos novacianos e os cataristas.

Indulgências papais. Condenamos, de modo especial, a doutrina lucrativa do Papa sobre a penitência, e contra a sua simonia e as suas indulgências simoníacas usamos o julgamento de São Pedro com respeito a Simão: “O teu dinheiro seja contigo para perdição, pois julgaste adquirir por meio dele o dom de Deus. Não tens parte nem sorte neste ministério, porque o teu coração não é reto diante de Deus” (At 8.20 ss).

Satisfações. Não aprovamos também aqueles que pensam que, pelas suas satisfações, reparam os pecados cometidos. Ensinamos que só Cristo, pela sua morte ou paixão, é a satisfação, a propiciação ou a expiação de todos os pecados (Is. cap. 53; I Co 1.30). Contudo, como já dissemos, não cessamos de insistir na mortificação da carne. Mas acrescentamos que essa mortificação não deve ser orgulhosamente exaltada perante Deus como satisfação pelos pecados, mas deve ser realizada humildemente, de conformidade com a natureza dos filhos de Deus, como uma nova obediência resultante da gratidão pelo livramento e pela satisfação plena obtidos pela morte e satisfação do Filho de Deus. 

15. Da verdadeira justificação dos fiéis 

Que é justificação? Segundo o apóstolo no seu tratamento da justificação, justificar significa “perdoar pecados”, “absolver de culpa e castigo”, “receber em graça” e “declarar justo”. Em sua Epístola aos Romanos o apóstolo diz: “É Deus quem os justifica. Quem os condenará?” (Rom 8.33). Justificar e condenar são termos opostos. E nos Atos dos Apóstolos o apóstolo diz: “Tomai, pois, irmãos, conhecimento de que se vos anuncia remissão de pecados por intermédio deste; e por meio dele todo o que crê é justificado de todas as cousas das quais vós não pudestes ser justificados pela lei de Moisés” (At 13.38 ss). Na Lei, assim como nos Profetas, lemos: “Em havendo contenda entre alguns, e vierem a juízo, os juizes os julgarão, justificando ao justo e condenando ao culpado” (Deut 25.1). E em Is. cap. 5: “Ai dos que... por suborno justificam o perverso”.

Somos justificados por causa de Cristo. É absolutamente certo que todos nós somos por natureza pecadores e ímpios, e diante do tribunal de Deus somos acusados de impiedade e réus de morte, mas, só pela graça de Cristo, sem qualquer mérito nosso ou consideração por nós, somos justificados, isto é, absolvidos dos pecados e da morte por Deus, o juiz. Que é, com efeito, mais claro do que o que disse São Paulo? “Pois todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus” (Rom 3.23 ss).

A justiça imputada. Cristo tomou sobre si mesmo e carregou os pecados do mundo, e satisfez a justiça divina. Portanto, é só por causa dos sofrimentos e ressurreição de Cristo que Deus é propício para com nossos pecados e não no-los imputa, mas imputa-nos como nossa a justiça de Cristo (II Co 5.19 ss; Rom 4.25), de modo que agora não só estamos limpos e purificados de pecados ou somos santos, mas também, sendo-nos dada a justiça de Cristo, e sendo nós assim absolvidos do pecado, da morte ou da condenação, somos finalmente justos e herdeiros da vida eterna. Propriamente falando, portanto, só Deus justifica, e justifica somente por causa de Cristo, não nos imputando os pecados, mas a sua justiça.

Somos justificados somente pela fé. E porque recebemos esta justificação, não por quaisquer obras, mas pela fé na misericórdia de Deus e em Cristo, por isso ensinamos e cremos, com o apóstolo, que o pecador é justificado somente pela fé em Cristo e não pela lei ou por quaisquer obras. O apóstolo diz: “Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei” (Rom 3.28). Também: “Porque se Abraão foi justificado por obras, tem de que se gloriar, porém não diante de Deus. Pois, que diz a Escritura? Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça... Mas ao que não trabalha, porém crê naquele que justifica ao ímpio, a sua fé lhe é atribuída como justiça” (Rom 4.2 ss; Gén 15.6). E outra vez: “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie”, etc. (Ef 2.8 ss). Portanto, porque a fé recebe Cristo, nossa justiça, e atribui tudo à graça de Deus em Cristo, por isso a justificação é atribuída à fé, principalmente por causa de Cristo, e não porque ela seja obra nossa, visto que é dom de Deus.

Recebemos Cristo pela fé. Além disso, o Senhor mostra sobejamente que recebemos Cristo pela fé, em João, cap. 6, onde ele usa comer por crer, e crer por comer. Pois, como é comendo que recebemos o alimento, assim é crendo que participamos de Cristo. A justificação não é atribuída parcialmente a Cristo ou à fé, e parcialmente a nós. Por conseguinte, não compartilhamos do benefício da justificação em parte por causa da graça de Deus ou de Cristo, e em parte por causa de nós mesmos, de nosso amor, de nossas obras ou de nosso mérito, mas atribuímo-lo totalmente à graça de Deus em Cristo pela fé. Mas também nosso amor e nossas obras não poderiam agradar a Deus, sendo realizados por homens injustos: por isso, é necessário que sejamos justos antes que possamos amar ou praticar obras justas. Somos feitos verdadeiramente justos, como dissemos, pela fé em Cristo, só pela graça de Deus, que não nos imputa os nossos pecados, mas a justiça de Cristo, e por isso, ele nos imputa a fé em Cristo como justiça. Ademais, o apóstolo mui claramente deriva da fé o amor, quando diz: “Ora, o intuito da presente admoestação visa o amor que procede de coração puro e de consciência boa e de fé sem hipocrisia” (I Tim 1.5).

Tiago comparado com Paulo. Por isso, aqui falamos, não de uma fé imaginária, vã e inerte ou morta, mas de uma fé viva e vivificante, a qual, por apreender a Cristo, que é vida e vivifica, é viva e se chama “viva” e se mostra viva por obras vivas. E assim São Tiago não contradiz coisa alguma nesta nossa doutrina. É que ele fala de uma fé vã e morta, da qual alguns se vangloriavam, mas que não tinham Cristo vivendo neles pela fé (Tiago 2.14 ss). São Tiago disse que as obras justificam, contudo sem contradizer o apóstolo (do contrário ele teria de ser rejeitado), mas mostrando que Abraão provou sua fé viva e justificadora pelas obras. É isso o que fazem todos os piedosos, confiados, porém, só em Cristo e não em suas próprias obras. O apóstolo ainda diz: “Já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que agora tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim. Não anulo a graça de Deus; pois, se a justiça é mediante a lei, segue-se que morre Cristo em vão”, etc. (Gal 2.20).

16. Da fé e das boas obras, e da sua recompensa, e do mérito do homem 

Que é a fé? A fé cristã não é opinião e convicção humana, mas confiança extremamente firme, e o claro e inabalável assentimento do espírito, e finalmente a apreensão certíssima da verdade de Deus apresentadas nas Escrituras e no Credo dos Apóstolos, assim como apreensão do próprio Deus, o supremo bem, e especialmente da promessa de Deus e de Cristo, que é o cumprimento de todas as promessas.

A fé é dom de Deus. Mas esta fé é simplesmente um dom de Deus, que só ele pela sua graça, segundo a sua medida, concede aos seus eleitos quando, a quem e quanto ele quer. E ele realiza isso pelo Espírito Santo, pela pregação do Evangelho e pela oração fiel.

O aumento da fé. Essa fé pode também ser aumentada por Deus; se assim não fosse, o apóstolo não teria dito: “Senhor: aumenta-nos a fé” (Luc 17.5). Tudo o que até aqui temos dito com respeito à fé, os apóstolos ensinaram antes de nós. São Paulo disse: “Ora, a fé é hypostasis ou a certeza das cousas que se esperam, a elegchos, isto é, a convicção dos fatos que se não vêem” (Heb 11.1). E noutro passo ele diz que todas as promessas de Deus são sim por Cristo, e pelo mesmo Cristo são amém (II Co 1.20). E aos filipenses ele disse que a eles lhes foi dado crer em Cristo (Fil 1.29). Noutro passo: Deus concedeu a cada um a medida da fé (Rom 12.3). Noutro ainda: “Nem todos têm fé” e, “Nem todos obedecem ao Evangelho” (II Tes 3.2; Rom 10.16). Também Lucas atesta, dizendo: “Creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna” (At 13.48). Eis porque São Paulo também a chama “a fé dos eleitos de Deus” (Tit I.1 ), e outra vez: “A fé vem pela pregação e a pregação pela palavra de Cristo” (Rom 10.17). Em outras partes, com freqüência, manda que os homens orem pedindo fé.

Fé eficaz e ativa. O mesmo apóstolo chama a fé “eficaz” e “que atua pelo amor” (Gal 5.6). Ela também acalma a consciência e abre um livre acesso para Deus, de modo que podemos aproximar-nos dele com confiança e dele conseguir o que é útil e necessário. A mesma (fé) conserva-nos no serviço que devemos a Deus e ao próximo, fortalece-nos a paciência na adversidade, molda uma verdadeira confissão e manifesta-a: numa palavra, produz bons frutos de todas as espécies, e boas obras.

Das boas obras. Ensinamos que as verdadeiras boas obras nascem de uma fé viva, pelo Espírito Santo, e são praticadas pelos fiéis segundo a vontade ou a regra da Palavra de Deus. Ora, o apóstolo São Pedro diz: “Reunindo a vossa diligência, associai com a vossa fé a virtude; com a virtude, o conhecimento; com o conhecimento, o domínio próprio”, etc. (II Ped 1.5 ss). Dissemos acima que a Lei de Deus, que é sua vontade, estabelece para nós o padrão de boas obras. E o apóstolo diz: “Pois esta é a vontade de Deus, a vossa santificação: que vos abstenhais da prostituição... e que, nesta matéria, ninguém ofenda nem defraude a seu irmão” (I Tes 4.3 ss).

Obras de escolha humana. E na verdade, obras e cultos que escolhemos por nosso arbítrio não são agradáveis a Deus. A estes São Paulo denomina ethelothreskia (CI 2.23). Desses o Senhor diz no Evangelho: “Em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens” (Mat 15.9). Portanto, desaprovamos tais obras, mas aprovamos e estimulamos aquelas que são da vontade e de mandado de Deus.

O fim das boas obras. Essas mesmas obras não devem ser praticadas para, por meio delas, ganharmos a vida eterna pois, como diz o apóstolo, a vida eterna é dom de Deus. Nem devem ser elas praticadas por ostentação, o que o Senhor rejeita em Mat, cap. 6, nem para lucro, o que também ele rejeita em Mat, cap. 23, mas para a glória de Deus, para adornar a nossa vocação, para manifestar gratidão a Deus e para benefício do próximo. É assim que Nosso Senhor diz no Evangelho: “Assim brilhe também a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus” (Mat S.16). E o apóstolo São Paulo diz: “Que andeis de modo digno da vocação a que fostes chamados” (Ef 4.1). Ainda: “E tudo o que fizerdes, seja em palavra, seja em acção, fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai” (Col 3.17); “Não tenha cada um em vista o que é propriamente seu, senão também cada qual o que é dos outros” (Fil 2.4); “Que aprendam também a distinguir-se nas boas obras, a favor dos necessitados, para não se tornarem infrutíferos” (Tit 3.14).

As boas obras não são rejeitadas. Portanto, embora ensinemos com o apóstolo que o homem é justificado pela graça pela fé em Cristo e não por quaisquer boas obras, contudo não menosprezamos nem condenamos as boas obras. Sabemos que o homem não foi criado ou regenerado pela fé, para viver ocioso, mas antes para fazer sem cessar o que é bom e útil. No Evangelho o Senhor diz que uma árvore boa produz bom fruto (Mat 12.33), e que aquele que nele permanece produz muito fruto (João 15.5). O apóstolo diz: “Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (Ef 2.10). E ainda: “O qual a si mesmo se deu por nós, a fim de remir-nos de toda iniqüidade, e purificar para si mesmo um povo exclusivamente seu, zeloso de boas obras” (Tit 2.14). Condenamos, portanto, todos os que desprezam as boas obras e vivem a dizer que não precisamos dar atenção a elas e que elas são inúteis.

Não somos salvos pelas boas obras. Entretanto, como foi dito acima, não julgamos que somos salvos pelas boas obras nem que elas sejam necessárias para a salvação, de modo que sem elas ninguém já tenha sido salvo. Pois somos salvos somente pela graça e pelo favor de Cristo. As obras procedem, necessariamente, da fé. A salvação é impropriamente atribuída a elas; ao passo que é com absoluta propriedade que ela é atribuída à graça. É bem conhecida a declaração do apóstolo: “E se é pela graça, já não é pelas obras; do contrário, a graça já não é graça” (Rom 11.6).

As boas obras agradam a Deus. As obras que praticamos pela fé são agradáveis a Deus e são por ele aprovadas. Por causa da fé em Cristo, aqueles que praticam boas obras, que sobretudo pelo Espírito Santo são praticadas pela graça de Deus, são agradáveis a Deus. São Pedro diz: “Em qualquer nação, aquele que teme e faz o que é justo lhe é aceitável” (At 10.35). E São Paulo diz: “Não cessamos de orar por vós... a fim de viverdes de modo digno do Senhor, para o seu inteiro agrado, frutificando em toda boa obra” (Col 1.9 ss).

Ensinamos as verdadeiras virtudes, não as falsas e filosóficas. Assim, zelosamente ensinamos as verdadeiras virtudes, não as falsas ou filosóficas, as verdadeiramente boas obras e os genuínos serviços de um cristão. E tanto quanto podemos, diligente e insistentemente as inculcamos a todos os homens, censurando ao mesmo tempo a desídia e hipocrisia dos que com os lábios louvam e professam o Evangelho e o desonram pelas suas vidas ignominiosas. Nesta questão, pomos diante deles as terríveis ameaças de Deus, bem como as suas ricas promessas e generosas recompensas - exortando, consolando e repreendendo.

Deus recompensa as boas obras. Ensinamos que Deus dá uma rica recompensa aos que praticam boas obras, segundo a palavra do profeta: “Reprime a tua voz de choro... porque há recompensa para as tuas obras” (Jer 31.16; Is. cap. 4). Também o Senhor disse no Evangelho: “Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus” (Mat 5.12), e “Quem der a beber ainda que seja um copo de água fria, a um destes pequeninos ... em verdade vos digo que de modo algum perderá o seu galardão” (cap. 10.42). Atribuímos, entretanto, esta recompensa, que o Senhor dá, não ao mérito do homem que a recebe, mas à bondade ou generosidade e veracidade de Deus, que a promete e a dá, e que, embora não deva nada a ninguém, contudo prometeu que dará recompensa a seus fiéis adoradores; mas ele lhes dá para que eles o adorem. Além disso, mesmo nas obras dos santos há muitas coisas indignas de Deus e muitas mais que são imperfeitas. Mas, porque Deus recebe em graça e acolhe os que praticam obras por amor a Cristo, confere-lhes a prometida recompensa. A assim que em outro contexto as nossas justiças são comparadas a “trapo de imundícia” (Is 64.6). Também o Senhor diz no Evangelho: “Vós, depois de haverdes feito quanto vos foi ordenado, dizei: Somos servos inúteis, porque fizemos apenas o que devíamos fazer” (Luc 17.10).

Os méritos dos homens são nulos. Portanto, embora ensinemos que Deus recompensa as nossas boas ações, todavia ensinamos, ao mesmo tempo, com Santo Agostinho, que Deus não coroa em nós os nossos méritos, mas os seus dons. Por isso dizemos, que qualquer recompensa que recebemos é também graça, e é mais graça que recompensa, porque o bem que fazemos, fazemo-lo mais por Deus do que por nós mesmos, e porque São Paulo diz: “Que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te vanglorias, como se o não tiveras recebido?” (I Co 4.7). E isto é o que o bendito mártir São Cipriano concluiu deste verso: Não devemos gloriar-nos de coisa alguma em nós, visto que nada é propriamente nosso. Condenamos, portanto, os que defendem os méritos dos homens, de modo a esvaziar a graça de Deus.

17. Da Igreja de Deus, santa e católica, e do único Cabeça da Igreja. 

A Igreja sempre existiu e sempre existirá. Visto que Deus desde o princípio quis salvar os homens e trazê-los ao conhecimento da verdade (I Tim 2.4), é absolutamente necessário que a Igreja tenha existido no passado, exista agora e continue até o fim do mundo.

Que é a Igreja. A Igreja é a assembléia dos fiéis convocada ou reunida do mundo: é, direi, a comunhão de todos santos, isto é, dos que verdadeiramente conhecem, adoram corretamente e servem o verdadeiro Deus em Cristo, o Salvador, pela palavra e pelo Espírito Santo, e que, finalmente, participam, pela fé, de todos os benefícios gratuitamente oferecidos mediante Cristo. Cidadãos de uma comunidade. São todos eles cidadãos de uma só cidade, vivem sob o mesmo Senhor, sob as mesmas leis, e na mesma participação de todos os benefícios. O apóstolo os chamou “concidadãos dos santos, e... da família de Deus” (Ef 2.19), denominando “santos” os fiéis na terra (I Co 4.1), que são santificados pelo sangue do filho de Deus. Deve ser entendido inteiramente com relação a estes santos o artigo do Credo: “Creio na santa Igreja Católica, na comunhão dos santos”.

Uma só Igreja em todos os tempos. E, visto que há sempre um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens, Jesus o Messias, e um só Pastor de todo o rebanho, uma só Cabeça deste corpo, enfim, um só Espírito, uma só salvação, uma só fé, um só testamento ou aliança, segue-se, necessariamente, que existe uma só Igreja. A Igreja Católica. Por isso chamamos “católica” e essa Igreja, porque é universal, e se espalha por todas as partes do mundo, estende-se por todos os tempos e não é limitada pelo tempo ou pelo espaço. Condenamos, portanto, os donatistas, que confinavam a Igreja a não sei que cantos da África, e não aprovamos o clero romano, que vive a propalar que só a Igreja de Roma é Católica.

Partes ou formas da Igreja. A Igreja divide-se em diferentes partes ou formas, não por estar dividida ou rasgada em si mesma, mas por ser distinta pela diversidade dos seus membros. Militante e triunfante. Uma é chamada a Igreja Militante e a outra a Igreja Triunfante. A primeira ainda milita na terra e luta contra a carne, o mundo e o Diabo, que é o príncipe deste mundo, e contra o pecado e a morte. A outra, já deu baixa e triunfa no céu depois de ter vencido esses inimigos, e exulta diante do Senhor. Entretanto, essas duas igrejas têm comunhão e união uma com a outra.

A Igreja particular. A Igreja Militante na terra tem tido, sempre, muitas igrejas particulares. Contudo, todas estas devem ser referidas à unidade da Igreja católica. Esta Igreja (Militante) foi estabelecida de um modo antes da Lei, entre os patriarcas, de outro modo diferente sob Moisés, pela Lei; e de modo diferente por Cristo, por meio do Evangelho.

Os dois povos. Em geral se mencionam dois povos: os israelitas e os gentios, ou aqueles que foram congregados de entre judeus e gentios na Igreja. Há, também, dois Testamentos, o Velho e o Novo. A mesma Igreja para o velho e o novo povo. No entanto, de todos esses povos foi e ainda é só uma a comunidade, uma só a salvação num só Messias, em quem, como membros de um só corpo, sob um só Cabeça, todos estão unidos na mesma fé, participando também do mesmo alimento e da mesma bebida espiritual. Aqui, porém, reconhecemos uma diversidade de tempos e uma diversidade nos sinais do Messias prometido e manifestado; agora, abolidas as cerimônias, a luz brilha sobre nós de maneira mais clara, e bênçãos nos são dadas mais abundantemente, e uma liberdade mais completa.

A Igreja, casa do Deus vivo. Esta santa Igreja de Deus é chamada a casa do Deus vivo, construída de pedras vivas e espirituais e fundada sobre uma rocha firme, sobre fundamento que ninguém tem o direito de substituir por um outro, e é, assim chamada “coluna e baluarte da verdade” (I Tim 3.15). A Igreja não erra. Ela não erra, enquanto se apóia sobre a rocha, Cristo, e sobre o fundamento dos profetas e apóstolos. E não é de admirar se ela errar, todas as vezes que abandonar aquele que, só, é a verdade. A Igreja noiva e virgem. A Igreja é também chamada virgem e a noiva de Cristo e, em verdade, única e dileta. O apóstolo diz: “Tenho-vos preparado para vos apresentar como virgem pura a um esposo” (II Co II.2). A Igreja, rebanho de ovelhas. A Igreja é chamada rebanho sob um só pastor, Cristo, segundo Ez, cap. 34, e João, cap. 10. A Igreja corpo de Cristo. É chamada também corpo de Cristo, porque os fiéis são os membros vivos de Cristo, sob Cristo, o Cabeça.

Cristo o único cabeça da Igreja. É a cabeça que tem a preeminência no corpo, e dela o corpo todo recebe vida; pelo seu espírito o corpo é em tudo governado; dela, ainda, o corpo recebe incremento e crescimento. Mais ainda, há uma só cabeça do corpo a qual com ele se ajusta. Por isso a Igreja não pode ter nenhuma outra cabeça além de Cristo. Como a Igreja é um corpo espiritual, ela precisa ter também uma cabeça espiritual em harmonia consigo mesma. Não pode ser governada por outro espírito que não seja o Espírito de Cristo. Por conseguinte, São Paulo diz: “Ele é a cabeça do corpo, da igreja. Ele é o princípio, o primogênito de entre os mortos, para em todas as cousas ter a primazia” (Col 1.18). E em outro lugar: “Cristo é o cabeça da igreja, sendo este mesmo salvador do corpo” (Ef 5.23). E novamente: Ele é “o cabeça sobre todas as cousas, e o deu à igreja, a qual é o seu corpo, a plenitude daquele que a tudo enche em todas as cousas” (Ef 1.22 ss). Também: “Cresçamos em tudo naquele que é o cabeça, Cristo, de quem todo o corpo, bem ajustado e consolidado... efetua o seu próprio aumento” (Ef 4.15 ss). Por isso não aprovamos a doutrina do clero romano, que faz do seu Pontífice Romano o pastor universal, o cabeça supremo da Igreja Militante aqui na terra, e assim o próprio vigário de Jesus Cristo, que tem, como eles dizem, toda a plenitude de poder e soberana autoridade na Igreja. Cristo o único pastor da Igreja. Ensinamos que Cristo, nosso Senhor, é e continua a ser o único pastor universal e sumo Pontífice diante de Deus seu Pai, e que na Igreja ele mesmo realiza todas as funções de um pontífice ou pastor, até o fim do mundo; [VIGÁRIO] e, conseqüentemente, não necessita de vigário, que é substituto de quem está ausente. Mas Cristo está presente com sua Igreja e é sua cabeça vivificadora. Nenhum primado na Igreja. Ele proibiu, com toda a severidade, aos seus apóstolos e sucessores qualquer veleidade de primado e domínio na Igreja. Portanto, todos os que resistem, opondo-se a essa verdade transparente, e introduzem outro governo na Igreja de Cristo devem ser ligados àqueles, a respeito de quem profetizam os apóstolos de Cristo, São Pedro e São Paulo, em II Ped cap. 2, e Act 20.2, II Co 11.2, II Tes, cap. 2, assim como em outros passos.

Nenhuma confusão na Igreja. Contudo, repudiando o cabeça romano, não introduzimos na Igreja de Cristo nenhuma confusão ou perturbação, pois ensinamos que o governo da Igreja, estabelecido pelos apóstolos, nos é suficiente para conservar a Igreja na devida ordem. No princípio, quando a Igreja não tinha esse chefe romano, que hoje, como se diz, a conserva em ordem, não estava em confusão ou desordenada. O chefe romano preserva, na verdade, a sua tirania e a corrupção que foi introduzido na Igreja; e, ao mesmo tempo, ele impede, resiste e, com todas as suas forças, arruína a conveniente reforma da Igreja.

Dissentimento e luta na Igreja. Objetam-nos que tem havido várias lutas e dissenssões em nossas Igrejas desde que se separaram da Igreja Romana, e que por isso elas não podem ser igrejas verdadeiras. Como se nunca tivesse havido seitas na Igreja Romana, nem dissenssões e lutas a respeito de religião, e na verdade presentes não tanto nas escolas como nos púlpitos no meio do povo. Sabemos, certamente, que o apóstolo disse: “Deus não é de confusão; e, sim, de paz” (I Co 14.33). E: “porquanto, havendo entre vós ciúmes e contendas, não é assim que sois carnais?” Contudo, não podemos negar que Deus estava na Igreja apostólica e que a Igreja apostólica era Igreja verdadeira, não obstante a existência de combates e dissensões nela. O apóstolo São Paulo repreendeu o apóstolo São Pedro (Gal 2.11 ss), e Barnabé divergiu de Paulo. Grande luta surgiu na Igreja de Antioquia entre os que pregavam o único Cristo, como Lucas registra nos Atos dos Apóstolos, cap. 15. E tem havido, em todos os tempos, graves lutas na Igreja, e os mais eminentes doutores da Igreja divergiram de opinião entre si acerca de importantes assuntos, sem, no entanto, a Igreja deixar de ser aquilo que ela era, por causa de tais contendas. Pois, dessa forma, é do agrado de Deus usar as dissensões que surgem na Igreja para a glória do seu nome, para elucidar a verdade e para que os que são aprovados sejam manifestados (I Co 11.19).

Marcas ou sinais da verdadeira Igreja. Ademais, visto que não reconhecemos nenhum outro chefe da Igreja a não ser Cristo, de igual modo não reconhecemos como a verdadeira Igreja qualquer Igreja que se vangloria de o ser; ensinamos, no entanto, que a verdadeira Igreja é aquela em que se encontram as marcas ou sinais da verdadeira Igreja, principalmente a legítima e sincera pregação da palavra de Deus como nos foi deixada nos escritos dos profetas e apóstolos, que nos conduzem todos nós a Cristo, que no Evangelho disse: “As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna... De modo nenhum seguirão o estranho, antes fugirão dele porque não conhecem a voz dos estranhos” (João 10.5, 27, 28).

E aqueles que são assim na Igreja de Deus têm uma fé e um espírito; e por isso adoram o único Deus e só a ele cultuam em espírito e verdade, só a ele amando de todo o coração e de todas as suas forças, só a ele orando por meio de Jesus Cristo, o único Mediador e Intercessor; e não buscam nenhuma justiça e vida fora de Cristo e da fé nele. Pelo fato de reconhecerem a Cristo como o único chefe e fundamento de sua Igreja, apoiando-se nele, renovam-se diariamente pelo arrependimento e, com paciência, carregam a cruz imposta a eles. Além disso, congregados juntos com todos os membros de Cristo por um amor não fingido, revelam que são discípulos de Cristo perseverando no vínculo da paz e da santa unidade. Ao mesmo tempo participam dos sacramentos instituídos por Cristo e a nós entregues pelos seus apóstolos, não os usando de nenhuma outra maneira a não ser como os receberam do próprio Senhor. Aquela palavra do apóstolo São Paulo é bem conhecida de todos: “Porque eu recebi do Senhor o que também vos entreguei” (I Co 11.23 ss). Por causa disso, condenamos como alienadas da verdadeira Igreja de Cristo todas aquelas igrejas que não são como ouvimos que devem ser, a despeito do muito que se jactam de uma sucessão de bispos, de unidade e de antiguidade. Além do mais, temos a advertência dos apóstolos de Cristo, para que fujamos da idolatria e de Babilônia (I Co 10.14; I João 5.21), e não tenhamos parte com ela se não queremos ser participantes das pragas de Deus (Apoc 18.4; II Co 6.17).

Fora da Igreja de Deus não há salvação. Consideramos a comunhão com a verdadeira Igreja de Cristo coisa tão elevada que negamos que possa viver perante Deus aqueles que não estiverem em comunhão com a verdadeira Igreja de Deus, mas dela se separam. Pois, como não havia salvação fora da arca de Noé, quando o mundo perecia no dilúvio, igualmente cremos que não há salvação certa e segura fora de Cristo, que se oferece para o bem dos eleitos na Igreja; e por isso ensinamos que os que querem viver não podem separar-se da Igreja de Cristo.

A Igreja não está limitada aos seus sinais. Entretanto, pelos sinais acima mencionados, não restringimos a Igreja ao ponto de ensinarmos que estão fora dela todos aqueles que ou não participam dos sacramentos, pelo menos não voluntariamente ou por desprezo, mas antes, forçados pela necessidade, involuntariamente se abstêm deles ou deles são privados, ou em quem a fé algumas vezes falha, embora não seja inteiramente extinta e não cesse de todo; ou em quem se encontram as imperfeições e erros devidos à fraqueza. Sabemos que Deus teve alguns amigos no mundo fora da comunidade de Israel. Sabemos do que aconteceu ao povo de Deus no cativeiro da Babilônia, onde foram privados dos seus sacrifícios por setenta anos. Sabemos o que aconteceu a São Pedro, que negou o Mestre, e o que costuma acontecer diariamente aos eleitos de Deus e às pessoas fiéis que se desviam e são fracas. Sabemos, mais, que tipo de igrejas eram as existentes na Galácia e em Corinto nos dias dos apóstolos, nas quais o apóstolo encontrou muitos e sérios pecados; apesar disso ele as chama santas igrejas de Cristo (I Co 1.2; Gal 1.2).

A Igreja às vezes parece estar extinta. Sim, muitas vezes acontece que Deus, em seu justo juízo, permite que a verdade da sua Palavra, a fé católica e o culto verdadeiro de Deus sejam de tal forma obscurecidos e deformados, que a Igreja parece quase extinta e não mais existir, como vemos ter acontecido nos dias de Elias (I Reis 19.10, 14), e em outras ocasiões. Não obstante, Deus tem, neste mundo e nestas trevas, os seus verdadeiros adoradores, que não são poucos, chegando mesmo a sete mil e mais (I Reis 19.18, Apoc 7.4, 9). Pois o apóstolo exclama: “O firme fundamento de Deus permanece, tendo este selo, ‘O Senhor conhece os que lhe pertencem’”, etc. (II Tim 2.19). Vem daí que pode a Igreja de Deus ser designada invisível; não que os homens dos quais ela é formada sejam invisíveis, mas porque, estando oculta de nossos olhos e sendo conhecida só de Deus, ela às vezes secretamente foge ao juízo humano.

Nem todos os que estão na Igreja são da Igreja. Por outro lado, nem todos os que são contados no número da Igreja são santos ou membros vivos e verdadeiros da Igreja. Pois há muitos hipócritas que externamente ouvem a palavra de Deus e publicamente recebem os sacramentos, e parecem invocar a Deus somente por meio de Cristo, confessar que Cristo é a sua única justiça, e adorar a Deus e exercer os deveres de caridade e por algum tempo suportar com paciência as desgraças. E, não obstante, interiormente, estão completamente destituídos da verdadeira iluminação do Espírito, de fé e de sinceridade de coração, e de perseverança até o fim. Mas finalmente o caráter destes homens, em sua maior parte, será manifestado. O apóstolo São João diz: “Eles saíram de nosso meio, mas não eram dos nossos; porque, se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco” (I João 2.19). Todavia, conquanto simulem piedade, não são da Igreja, ainda que sejam considerados estarem na Igreja, exatamente como os traidores numa república estão incluídos no número de seus cidadãos, antes que sejam descobertos; e, como o joio e a palha se encontram no trigo, e como inchaços e tumores se acham no corpo sadio, quando ao contrário são doenças e deformidades e não genuínos membros do corpo. E assim a Igreja de Deus é muito adequadamente comparada a uma rede que retira peixes de todas as espécies, e a um campo no qual se encontram joio e trigo (Mat 13.24 ss, 47 ss).

Não devemos julgar irrefletida e prematuramente. Conseqüentemente, devemos ser muito cuidadosos, não julgando antes da hora, nem tentando excluir e rejeitar ou separar aqueles aos quais o Senhor não quer excluídos nem rejeitados, e nem aqueles que não podemos eliminar sem prejuízo para a Igreja. Por outro lado, devemos estar vigilantes para que, enquanto os piedosos ressonam, os ímpios não ganhem terreno e causem mal à Igreja.

A unidade da Igreja não consiste em ritos externos. Além disso, diligentemente ensinamos que se deve tomar grande cuidado naquilo em que consistem de modo especial a verdade e a unidade da Igreja, para não provocarmos nem alimentarmos cismas na Igreja, irrefletidamente. A unidade não consiste em cerimônias e ritos externos, mas antes na verdade e unidade da fé católica. A fé católica não nos é transmitida pelas leis humanas, mas pelas Santas Escrituras, das quais é um resumo o Credo Apostólico. E, assim, lemos nos escritores antigos que havia grande diversidade de cerimônias, mas que eram livres e ninguém jamais pensava que a unidade da Igreja era, desse modo, dissolvida. Assim, ensinamos que a verdadeira harmonia da Igreja consiste em doutrinas e na verdadeira e unânime pregação do Evangelho de Cristo, nos ritos que foram expressamente transmitidos pelo Senhor. E aqui insistimos na palavra do apóstolo: “Todos, pois, que somos perfeitos, tenhamos este sentimento; e, se porventura pensais doutro modo, também isto Deus vos esclarecerá. Todavia, andemos de acordo com o que já alcançamos” (Fil 3.11 ss).

18. Dos ministros da Igreja, sua instituição e deveres 

Deus usa ministros na edificação da Igreja. Deus sempre usou ministros para reunir ou estabelecer para si a Igreja, e para o governo e preservação da mesma; e ainda os usa e sempre os usará, enquanto a Igreja permanecer na terra. Portanto, a origem, a instituição e o ofício de ministros é uma ordenação muito antiga de Deus mesmo e não inovação de homens. Instituição e origem de ministros. É verdade que Deus poderia, pelo seu poder, sem qualquer meio, congregar para si mesmo uma Igreja de entre os homens; mas ele preferiu tratar com os homens pelo ministério de homens. Por isso os ministros devem ser considerados não como ministros apenas por si mesmos, mas como ministros de Deus, visto que por meio deles Deus realiza a salvação de homens.

O ministério não deve ser depreciado. Por essa razão, chamamos a atenção dos homens para que tomem cuidado para não atribuirmos o que diz respeito à nossa conversão e instrução ao poder secreto do Espírito Santo, fazendo pouco do ministério eclesiástico. Pois convém termos sempre em mente as palavras do apóstolo: “Como, porém, invocarão aquele

em que não creram? e como crerão naquele de quem nada ouviram? e como ouvirão, se não há quem pregue? ... E assim, a fé vem pela pregação e a pregação pela palavra de Cristo” (Rom 10.14, 17). E também o que o Senhor disse no Evangelho: “Em verdade, em verdade vos digo: Quem recebe aquele que eu enviar, a mim me recebe; e quem me recebe, recebe aquele que me enviou” (João 13.20). De igual modo, um homem da Macedônia, que apareceu numa visão a São Paulo, enquanto este se encontrava na Ásia, secretamente o admoestou dizendo: “Passa à Macedônia, e ajuda-nos” (At 16.9). E em outro lugar o mesmo apóstolo diz: “Porque de Deus somos cooperadores; lavoura de Deus, edifício de Deus sois vós” (I Co 3.9).

Por outro lado, no entanto, devemos precaver-nos para não atribuirmos demasiado aos ministros e ao ministério; aqui também lembrando-nos das palavras de nosso Senhor no Evangelho: “Ninguém pode vir a mim se o Pai que me enviou não o trouxer” (João 6.44), e as palavras do apóstolo: “Quem é Apolo? e quem é Paulo? Servos por meio de quem crestes, e isto conforme o Senhor concedeu a cada um ... Eu plantei, Apolo regou; mas o crescimento veio de Deus. De modo que nem o que planta é alguma cousa, nem o que rega, mas Deus que dá o crescimento” (I Co 3. 5, 7). Deus move os corações dos homens. Então, creiamos que Deus nos ensina pela sua palavra, externamente por meio dos seus ministros e internamente move os corações dos seus eleitos à fé pelo seu Espírito Santo; e que, portanto, devemos atribuir a Deus toda a glória de todo este benefício. Mas deste assunto já tratamos no primeiro capítulo desta Explanação.

Quem são os ministros e de que sorte são os que Deus deu ao mundo. E em verdade desde o princípio do mundo Deus usou os mais eminentes homens no mundo inteiro (ainda que muitos deles fossem simples na sabedoria terrena ou na filosofia, no entanto na verdadeira teologia eram excelentes), a saber, os patriarcas, com os quais ele falou freqüentemente pelos anjos. Pois os patriarcas eram os profetas e mestres dos seus dias, aos quais, por essa razão, quis Deus que vivessem por vários séculos, para que fossem, por assim dizer pais e luzes do mundo. Foram seguidos por Moisés e os profetas famosos pelo mundo inteiro.

Cristo o mestre. Depois destes o Pai celestial enviou o seu Filho unigênito, o mais perfeito mestre do mundo, em quem está escondida a sabedoria de Deus, a qual veio até nós através da mais santa, simples e perfeita de todas as doutrinas. Ele escolheu discípulos para si mesmo, aos quais fez apóstolos. Estes saíram por todo o mundo e em toda parte congregaram igrejas pela pregação do Evangelho, e depois ordenaram pastores ou mestres (doutores) em todas as igrejas do mundo, segundo o mandamento de Cristo; mediante seus sucessores ele ensinou e governou a Igreja até hoje. Portanto, como Deus deu ao seu povo antigo os patriarcas, juntamente com Moisés e os profetas, assim também ao seu povo do Novo Testamento ele enviou seu Filho unigênito e, com ele, os apóstolos e doutores da Igreja.

Ministros do Novo Testamento. Além disso, os ministros do novo povo são designados por diversos nomes. São chamados apóstolos, Profetas, evangelistas, bispos, anciãos, pastores e mestres (I Co 12.28; Ef 4.11). Os apóstolos. Os apóstolos não permaneciam num lugar determinado, mas por todo o mundo iam congregando diversas igrejas. Uma vez estas estabelecidos, deixou de haver apóstolos, e, em seu lugar, apareceram pastores, cada um em sua igreja. Profetas. Nos primeiros tempos eram videntes, conhecendo o futuro; mas também interpretavam as Escrituras. Tais homens são encontrados também hoje. Evangelistas. Os escritores da história evangélica eram chamados Evangelistas; mas eram também arautos do Evangelho de Cristo; como o apóstolo São Paulo ordena a Timóteo: “Faze o trabalho de evangelista” (II Tim 4.5). Bispos. Bispos são os supervisores e vigias da Igreja, que administram o alimento e outras necessidades da vida da Igreja. Presbíteros. Os presbíteros são os anciãos e, por assim dizer, os senadores e pais da Igreja, governando-a com sadio conselho. Pastores. Os pastores não só guardam o rebanho do Senhor, como também providenciam as coisas necessárias a ele. Mestres. Os mestres instruem e ensinam a verdadeira fé e piedade. Portanto, os ministros da Igreja podem, agora, ser chamados bispos, anciãos, pastores e mestres.

Ordens dos papistas. Com o passar o tempo, muitas outras designações de ministros na Igreja foram introduzidas na Igreja de Deus. Alguns foram ordenados patriarcas, outros arcebispos, outros sufragâneos; também metropolitanos, arquidiáconos, diáconos, subdiáconos, acólitos, exorcismas, cantores, porteiros e não sei quantos outros, como cardeais, reitores e priores; abades maiores e menores; ordens mais elevadas e inferiores. Não estamos preocupados, porém, acerca de todas estas, de como foram uma vez e são agora. Basta-nos a doutrina apostólica no que concerne aos ministros.

A respeito dos monges. Como sabemos com certeza que os monges e as ordens, ou seitas de monges, não são instituídas nem por Cristo, nem pelos apóstolos, ensinamos que elas nada valem para a Igreja de Deus; antes são perniciosas. Pois, embora anteriormente fossem toleráveis - quando eram solitários, ganhando a vida com suas próprias mãos, e não eram carga para ninguém e, como os leigos, eram por toda parte obedientes aos pastores das igrejas - agora, porém, o mundo todo vê e sabe a que são semelhantes. Eles formulam não sei que votos; mas levam vida totalmente contrária aos seus votos, de modo que os melhores deles merecem ser incluídos entre aqueles de quem o apóstolo fala: “Estamos informados de que entre vós há pessoas que andam desordenadamente, não trabalhando” etc. (II Tes 3.11 ). Portanto, não temos tais pessoas em nossas igrejas, nem ensinamos que devem existir nas igrejas de Cristo.

Os ministros devem ser chamados e eleitos. Ninguém deve usurpar a honra do ministério eclesiástico; isto é, apoderar-se dele por suborno ou quaisquer enganos, ou por sua própria escolha. Que os ministros da Igreja sejam chamados e eleitos por eleição legal e eclesiástica; isto é, que sejam eleitos escrupulosamente pela Igreja ou por aqueles que dela receberam delegação para tal fim, na devida ordem, sem qualquer tumulto, divisões ou rivalidade. Não se eleja qualquer um, mas homens idôneos, que se distingam por suficiente cultura sagrada, piedosa eloqüência, sabedoria simples, e por fim, pela moderação e reputação honrada, segundo a regra apostólica fixada pelo apóstolo em I Tim, cap. 3, e Tit, cap. 1.

Ordenação. E os que foram eleitos sejam ordenados pelos anciãos com orações públicas e imposição das mãos. Aqui condenamos todos quantos concorrem por conta própria, não sendo nem escolhidos, nem enviados, nem ordenados (Jer. cap. 23). Condenamos os ministros ineptos e os desprovidos dos dons necessários a um pastor.

Ao mesmo tempo, reconhecemos que a inocente simplicidade de certos pastores na Igreja Antiga por vezes aproveitou mais à Igreja do que a erudição multiforme, refinada e elegante mas demasiado infatuada de outros. Por esse motivo não rejeitamos, nem mesmo hoje, a simplicidade honesta de alguns, que não é, porém, de modo algum ignorante.

O sacerdócio de todos os crentes. Sem dúvida, os apóstolos de Cristo designam todos os que crêem em Cristo como “sacerdotes”, não por causa de qualquer ofício, mas porque, por Cristo, todos os fiéis, feitos reis e sacerdotes, podemos oferecer sacrifícios espirituais a Deus (Êx 19.6; I Ped 2.9; Apoc 1.6). Portanto, o sacerdócio e o ministério são bem diferentes um do outro. O sacerdócio, como acabamos de dizer, é comum a todos os cristãos; o mesmo não acontece com o ministério. Nem abolimos o ministério da Igreja pelo fato de termos repudiado o sacerdócio papístico da Igreja de Cristo.

Sacerdotes e sacerdócio. Sem dúvida nenhuma, na nova aliança de Cristo não existe mais essa forma de sacerdócio como existia entre o povo antigo; o qual incluía unção externa, roupagens santas e inúmeras cerimônias que eram tipos de Cristo, que aboliu tudo isso pela sua vinda e cumprimento desses tipos. Mas ele mesmo permanece o único sacerdote para sempre e para não subtrairmos qualquer coisa dele, não chamamos sacerdote a nenhum dos ministros. Pois o próprio Senhor nosso não nomeou nenhum sacerdote na Igreja do Novo Testamento, que, tendo recebido autoridade do sufragâneo, ofereçam sacrifício diariamente, isto é, a própria carne e sangue do Senhor, pelos vivos e mortos, mas ministros que ensinem e administrem os sacramentos.

A natureza dos ministros do Novo Testamento. São Paulo expõe de modo simples e conciso o que devemos pensar dos ministros do Novo Testamento ou da Igreja Cristã, e o que devemos atribuir-lhes: “Assim, pois, importa que os homens nos considerem como ministros de Cristo, e despenseiros dos mistérios de Deus” (I Co 4.1). Por isso, o apóstolo quer que estimemos os ministros como ministros. Ora, o apóstolo os chamou hyperétas, “remadores”, que têm os olhos fixos unicamente no timoneiro, e são, assim, homens que não vivem para si mesmos ou segundo sua própria vontade, mas para os outros - a saber, para os seus senhores, de cujas ordens dependem inteiramente. Pois em todos os seus deveres todo ministro da Igreja recebe ordens, não de satisfazer a sua vontade, mas de executar apenas o que está nos mandamentos recebidos do seu Senhor. E neste caso declarasse, expressamente, quem é o Senhor, isto é, Cristo, a quem os ministros estão sujeitos em todas as questões do ministério.

Os ministros, despenseiros dos mistérios de Deus. Contudo, para explicar mais completamente o ministério, o apóstolo acrescenta que os ministros da Igreja são ecónomos ou despenseiros dos mistérios de Deus. Ora, em muitas passagens, especialmente em Efésios, cap. 3, São Paulo chamou “mistérios de Deus” ao Evangelho de Cristo. E os escritores antigos também chamaram “mistérios” aos sacramentos de Cristo. Assim, é para isto que os ministros da Igreja são vocacionados - para pregarem o Evangelho de Cristo aos fiéis e para administrarem os sacramentos. Lemos, ainda, em outro lugar do Evangelho, a respeito do “mordomo fiel e prudente” a quem “o senhor confiará os seus conservas para dar-lhes o sustento a seu tempo” (Luc 12.42). Além disso, em outra passagem do Evangelho, um homem parte de viagem para um pais estrangeiro e, deixando sua casa, passa os seus bens e a sua autoridade nesta a seus servos, dando a cada um a sua tarefa.

Do poder dos ministros da Igreja. Agora, pois, convém falarmos algo também acerca do poder e do dever dos ministros da Igreja. Sobre esse poder alguns têm discutido diligentemente, e a ele sujeitaram tudo o que há de supremo valor na terra, e o fizeram contrariamente ao mandamento do Senhor, que proibiu aos seus discípulos o domínio e recomendou com insistência a humildade (Luc 22. 24 ss; Mat 18.3 ss; 20.25 ss). Há, na verdade, outro poder que é simples e absoluto, chamado o poder do direito. Segundo esse poder, todas as coisas do mundo inteiro estão sujeitas a Cristo, o Senhor, como ele mesmo declarou, dizendo: “Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra” (Mat 28.18). E ainda: “Eu sou o primeiro e o último, e aquele que vive; estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos, e tenho as chaves da morte e do inferno” (Apoc 1.18). Igualmente: “... aquele que tem a chave de David, que abre e ninguém fechará, e que fecha e ninguém abre” (Apoc 3.7).

O Senhor reserva para si o verdadeiro poder. Esse poder o Senhor o reserva para si, e não o transfere a nenhum outro, ficando ao lado ocioso, como espectador, enquanto os seus ministros trabalham. É Isaías que diz: “Porei sobre o seu ombro a chave da casa de David” (Is 22.22). E outra vez: “O governo está sobre os seus ombros” (Is 9.6). Ele não lança o governo sobre os ombros de outros homens, mas ainda conserva e usa o seu próprio poder, governando todas as coisas.

O poder do ofício e o ministerial. Entretanto, há outro poder, o do oficio, ou poder ministerial, limitado por aquele que usa do poder pleno. E este é mais semelhante a um ministério do que a um império. As chaves. Um senhor concede poder ao seu mordomo e para isso dá-lhes as chaves, com as quais ele introduz na casa ou dela exclui quem o seu senhor gostaria de introduzir ou excluir. Em virtude desse poder o ministro, pelo seu oficio, realiza aquilo que o Senhor ordenou que ele fizesse, e o Senhor confirma aquilo que ele faz e deseja que o que o seu servo fez seja considerado e reconhecido como se ele mesmo o tivesse feito. Indubitavelmente, é a isto que se referem estas sentenças evangélicas: “Dar-te-ei as chaves do reino dos céus: o que ligares na terra, terá sido ligado nos céus; e o que desligares na terra, terá sido desligado nos céus” (Mat 16.19). Ainda: “Se de alguns perdoardes os pecados, são-lhes perdoados; se lhos retiverdes, são retidos” (João 20.23). Mas, se o ministro não agir em todas as coisas como o Senhor lhe ordenou, mas transgredir os limites da fé, então o Senhor certamente invalida aquilo que ele fez. Eis por que o poder eclesiástico dos ministros da Igreja é aquela função pela qual eles de fato governam a Igreja de Deus, mas fazem todas as coisas na Igreja como o Senhor as ordenou em sua Palavra. Quando essas coisas são feitas, os fiéis as consideram como feitas pelo próprio Senhor. Quanto às chaves, delas já se fez acima uma menção.

O poder dos ministros é um e o mesmo em todos. Ora, o mesmo e igual poder ou função é concedido a todos os ministros na Igreja. Certamente, no princípio os bispos ou presbíteros governavam a Igreja em comum; nenhum homem se elevava acima de qualquer outro, ninguém usurpava maior poder ou autoridade sobre seus co-epíscopos. Lembrados das palavras do Senhor “Aquele que dirige seja como o que serve” (Luc 22.26) conservavam-se em humildade, e pelo serviço mútuo ajudavam-se no governo e na preservação da Igreja.

A ordem a ser preservada. Entretanto, por causa da preservação da ordem, algum dos ministros convocava reunião da assembléia, e perante ela propunha assuntos a serem apresentados, reunia as opiniões dos demais e, enfim, o quanto estava nele, providenciava para que não surgisse confusão. Assim procedeu São Pedro, segundo lemos nos Atos dos Apóstolos, o qual contudo não era, por essa razão, preferido pelos demais, nem revestido de maior autoridade que os outros. Mui acertadamente disse o Mártir São Cipriano, no seu De Simplicitate Clericorum: “Os outros apóstolos eram, seguramente, o que era Pedro, dotados de semelhante associação de honra e poder; mas, [seu] primado procede da unidade para que a Igreja seja manifesta como sendo uma”.

Como e quando um foi colocado diante dos outros. Também São Jerônimo, em seu Comentário à Epístola de Paulo a Tito, diz algo não muito diferente disto: “Antes que começasse a ligação a pessoas em religião, pela instigação do diabo, as igrejas eram governadas pelo conselho comum dos anciãos; mas, depois que cada um passou a pensar que aqueles que ele havia batizado eram seus e não de Cristo, decretou-se que um dos anciãos fosse escolhido e colocado sobre os demais, em quem recairia o cuidado de toda a Igreja, e que se removessem todas as sementes de cismas”. Contudo, São Jerônimo não recomenda este decreto como divino; pois ele logo acrescenta: “Assim como os anciãos sabem pelo costume da Igreja que se acham sujeitos ao que foi posto sobre eles, assim saibam os bispos, que se acham sobre os anciãos mais pelo costume do que pela verdade de uma disposição do Senhor, e que devem governar a Igreja em comum com eles”. Até aqui São Jerônimo. Por conseguinte, ninguém tem o direito de proibir o retorno à antiga constituição da Igreja de Deus, e recorrer a isso com apoio no costume humano.

Os deveres do ministro. São vários os deveres dos ministros, no entanto, em geral se restringem a dois, nos quais todos os outros estão incluídos: o ensino evangélico de Cristo e a legítima administração dos sacramentos. É dever dos ministros reunir a assembléia sagrada e nela expor a Palavra de Deus, e aplicar toda a doutrina à razão e ao uso da Igreja, de modo que o que for ensinado seja útil aos ouvintes e edifique os fiéis. É dever dos ministros, afirmo, ensinar os ignorantes e exortar; e estimular os indecisos ou ainda os que caminham lentamente à avançar no caminho do Senhor, consolar e confirmar os pusilânimes, e armá-los contra as multiformes tentações de Satanás; corrigir os que pecam; reconduzir ao caminho os transviados; levantar os caídos; convencer os contradizentes; expulsar do rebanho do Senhor os lobos; repreender, prudente e severamente os crimes e os criminosos; não serem coniventes nem se calarem perante o crime. Mas, além de tudo isso, é seu dever administrar os sacramentos, recomendar o uso justo deles e, pela sã doutrina, preparar todos para recebê-los; conservar também os fiéis numa santa unidade; e impedir os cismas, enfim catequizar os ignorantes, recomendar à Igreja as necessidades dos pobres, visitar, instruir e conservar no caminho da vida os enfermos e os afligidos por várias tentações. Além disso, devem cuidar das orações públicas ou das súplicas em ocasiões de necessidade, juntamente com o jejum, isto é, procurar uma santa abstinência; e cuidar o mais diligentemente possível de tudo o que diz respeito à tranqüilidade, à paz e à salvação das igrejas.

E para que o ministro possa realizar todas estas coisas da melhor maneira e mais facilmente, requer-se especialmente dele que tema a Deus, seja constante na oração, entregue-se à leitura sagrada e, em todas as coisas e em todas as ocasiões, seja vigilante, e pela pureza de vida deixe sua luz brilhar diante de todos os homens.

Disciplina. E, visto que a disciplina é absolutamente necessária na Igreja, e que a excomunhão foi outrora usada, entre os antigos, e havia, entre o povo de Deus julgamentos eclesiásticos, nos quais esta disciplina era exercida por homens sábios e piedosos, será também dever dos ministros regular essa disciplina para edificação, de acordo com as circunstâncias dos tempos, do estado público e com a necessidade. Todas as vezes que se deve observar a regra, tudo se deve fazer para edificação, decente e honestamente, sem tirania e divisão. Pois o apóstolo atesta que lhe foi outorgada pelo Senhor autoridade na Igreja “para edificação, e não para destruição” (II Co 10.8). E o Senhor mesmo proibiu arrancar o joio no campo do Senhor, porque haveria o perigo de ser arrancado o trigo juntamente com ele (Mat 13.29 ss).

Mesmo os maus ministros devem ser ouvidos. Ademais, detestamos energicamente o erro dos donatistas, que consideram a doutrina e a administração dos sacramentos eficazes ou ineficazes, segundo a vida boa ou má dos ministros. Porquanto sabemos que a voz de Cristo deve ser ouvida, mesmo dos lábios de maus ministros; porque o Senhor mesmo disse: “Fazei e guardai, pois, tudo quanto eles vos disserem, porém, não os imiteis nas suas obras” (Mat 23.3). Sabemos que os sacramentos são santificados pela instituição e pela palavra de Cristo, e que são válidos para o fiel, embora administrados por ministros indignos. Sobre este assunto Santo Agostinho, o bem-aventurado servo de Deus, muitas vezes argumentou com base nas Escrituras, contra os donatistas.

Sínodos. Apesar disso, deve haver disciplina adequada entre os ministros. Nos Sínodos a doutrina e a vida dos ministros devem ser cuidadosamente examinadas. Os que pecam devem ser repreendidos pelos anciãos e reconduzidos ao caminho certo, se forem curáveis; e, se forem incuráveis, devem ser depostos, e, como lobos, expulsos do rebanho do Senhor pelos verdadeiros pastores. Se são falsos mestres, não podem ser de modo algum tolerados. Nem desaprovamos os concílios ecumênicos, se convocados segundo o exemplo dos apóstolos, para a salvação da Igreja e não para sua destruição.

O obreiro é digno do seu salário. Todos os ministros fiéis, como bons obreiros, são também dignos do seu salário e não pecam quando recebem estipêndios e todas as coisas necessárias a eles mesmos e suas famílias. O apóstolo mostra em I Co, cap. 9 e em I Tim, cap. 5, bem como em outras passagens, que tais coisas são, de direito, dadas pela Igreja e recebidas pelos ministros. Os anabaptistas, que condenam e difamam os ministros que vivem do seu ministério, são também refutados pelo ensino apostólico.

19. Dos sacramentos e da Igreja de Cristo 

Os sacramentos (são) adicionais à Palavra e o que são eles. Deus, desde o princípio, acrescentou à pregação da Palavra em sua Igreja os sacramentos ou sinais sacramentais. É o que a Sagrada Escritura claramente testifica. Sacramentos são símbolos místicos, ou ritos santos, ou atos sagrados instituídos pelo próprio Deus, consistindo segundo a sua Palavra, de sinais e de coisas significadas, por meio das quais ele, na Igreja, conserva a memória dos grandes benefícios por ele concedidos ao homem - renovando-a freqüentemente - por meio dos quais, também, ele sela as suas promessas e, externamente as representa e, como que nos põe diante dos olhos aquelas coisas que internamente ele nos concede, e assim fortalece e aumenta a nossa fé pela operação do Espírito de Deus em nossos corações. Finalmente, por meio deles, ele nos separa de todos os outros povos e religiões, e nos consagra e nos liga a si só, e nos dá a entender o que ele requer de nós.

Alguns são sacramentos do Velho, outros do Novo Testamento. Alguns sacramentos são do velho povo, outros do novo. Os sacramentos do velho povo eram a Circuncisão e o Cordeiro Pascal, que era imolado; por essa razão, ele se relaciona com os sacrifícios celebrados desde o princípio do mundo.

O número dos sacramentos do novo povo. Os sacramentos do novo povo são o Batismo e a Ceia do Senhor. Alguns há que reconhecem sete sacramentos do novo povo. Destes, reconhecemos que o arrependimento, a ordenação de ministros - não a ordenação papista, mas a apostólica - e o matrimônio são instituições úteis de Deus, não porém sacramentos. A confirmação e a extrema unção são simples invenções dos homens, que a Igreja pode dispensar sem nenhum prejuízo. Na verdade, não as temos em nossas igrejas, pois elas contêm certas coisas que de modo nenhum podemos aprovar. Acima de tudo, detestamos todo o comércio que exercem os romanistas na dispensação dos sacramentos.

O autor dos sacramentos. O autor de todos os sacramentos não é nenhum homem, mas Deus somente. Os homens não podem instituir sacramentos. Estes fazem parte do culto de Deus. E não é da competência do homem estabelecer e prescrever o culto de Deus, mas receber e preservar o que por Deus foi entregue. Além disso, os símbolos têm juntas as promessas que requerem fé. E a fé se apóia exclusivamente na Palavra de Deus; e a Palavra de Deus assemelha-se a escritos ou cartas, e os sacramentos a selos, que somente Deus coloca nas cartas.

Cristo ainda opera nos sacramentos. E sendo Deus o autor dos sacramentos, assim ele continuamente opera na Igreja, em que os sacramentos são devidamente celebrados; de modo que os fiéis, quando recebem dos ministros os sacramentos, reconhecem que Deus opera em sua própria instituição, e portanto, recebem os sacramentos como da mão do próprio Deus; e os defeitos do ministro (ainda que sejam muito grandes) não podem prejudicá-lo, se eles reconhecem que a integridade dos sacramentos depende da instituição do Senhor.

Deve-se distinguir entre o autor e o ministro dos sacramentos. Por conseguinte, na administração dos sacramentos distinguem eles, também claramente, entre o Senhor mesmo e o ministro do Senhor, confessando que a substância dos sacramentos lhes é dada pelo próprio Senhor e os símbolos pelos ministros do Senhor.

A essência ou coisa principal nos sacramentos. Mas, a coisa principal que Deus propõe em todos os sacramentos e para a qual todos os piedosos de todos os tempos voltam a atenção que outros chamam substância e matéria nos sacramentos é Cristo o Salvador, o sacrifício único, o Cordeiro de Deus morto desde a fundação do mundo, a rocha, também, da qual todos os nossos pais beberam, por quem todos os eleitos são circuncidados não por mãos, pelo Espírito Santo, e são lavados de todos os seus pecados e alimentados com o próprio corpo e sangue de Cristo para a vida eterna.

Semelhança e diferença dos sacramentos do velho e do novo povo de Deus. Com respeito ao que é o principal e a própria matéria, os sacramentos de ambos os povos são iguais. Pois Cristo, o único Salvador e Mediador dos fiéis, é o principal elemento e a própria substância dos sacramentos em ambos; porquanto o mesmo Deus é o autor dos dois sacramentos.

Eles foram dados aos dois povos como sinais e selos da graça e das promessas de Deus, para que tragam à mente e renovem a lembrança dos grandíssimos benefícios de Deus e para que distinguissem os fiéis de todas as outras religiões do mundo; finalmente, para que fossem recebidos espiritualmente pela fé e ligassem à Igreja os participantes, e os lembrassem dos seus deveres. Nesses e em outros pontos semelhantes digo que os sacramentos de ambos os povos não são diferentes como parecem, embora exteriormente o sejam. E, na verdade. no que diz respeito aos sinais, fazemos uma maior distinção. Os nossos são mais firmes e mais duradouros, visto que nunca serão mudados até o fim do mundo. Mais ainda, os nossos testificam que tanto a substância como a promessa foram cumpridas ou consumadas em Cristo; os anteriores significavam o que estava para ser cumprido. Os nossos são também, mais simples e menos complicados, menos pomposos e menos envolvidos com cerimônias. E ainda mais, pertencem a um povo mais numeroso, disperso por toda a face da terra. E, porque são mais excelentes e pelo Espírito Santo despertam maior fé, resultam ainda, em maior abundância do Espírito.

Nossos sacramentos sucedem aos antigos, que foram abolidos. Certamente, visto que Cristo, o verdadeiro Messias, nos é apresentado e a abundância da graça é derramada sobre o povo do Novo Testamento, os sacramentos do velho povo de Deus foram abolidos e cessaram; e em seu lugar colocaram-se os símbolos do Novo Testamento - o Batismo em lugar da Circuncisão, a Ceia do Senhor em lugar do Cordeiro Pascal e dos sacrifícios.

Em que consistem os sacramentos. E como outrora os sacramentos consistiam da palavra, do sinal e da coisa significada, assim também agora eles se compõem, por assim dizer, dessas mesmas partes. Pois, a Palavra de Deus os faz sacramentos, o que antes não eram. A consagração dos sacramentos. São consagrados pela Palavra e declarados santificados por aquele que os instituiu. Santificar ou consagrar uma coisa a Deus é dedicá-la a usos sagrados isto é, retirá-la do uso comum ou profano e destiná-la a uso sagrado, pois, os sinais nos sacramentos se derivam do uso comum, de coisas externas e visíveis. No Batismo, o sinal externo é o elemento da água e a ablução visível, feita pelo ministro; a coisa significada é a regeneração e purificação de pecados. Na Ceia do Senhor, o sinal externo é o pão e o vinho, tomados do uso comum do comer e do beber; a coisa significado é o corpo do Senhor que foi entregue, e seu sangue vertido por nós, ou a comunhão do corpo e do sangue do Senhor. Por isso, a água, o pão, o vinho, segundo sua natureza e à parte da instituição divina e do uso sagrado, são somente aquilo que são chamados, e que experimentamos. Mas, quando a Palavra do Senhor lhes é acrescentada, com a invocação do nome divino e a renovação de sua primeira instituição e santificação, então esses sinais são consagrados e se mostram santificados por Cristo. A primeira instituição de Cristo e a consagração dos sacramentos permanece sempre eficaz na Igreja de Deus, de tal modo que aqueles que celebram os sacramentos, não de modo diferente daquele que o Senhor mesmo estabeleceu desde o princípio, ainda hoje desfrutam daquela primeira e sobre-excelente consagração. E por isso, na celebração dos sacramentos, são repetidas as próprias palavras de Cristo.

Os sinais recebem o nome das coisas significadas. Porque aprendemos da Palavra de Deus que estes sinais foram instituídos para outro fim, diverso do uso comum, ensinamos que eles agora, em seu santo uso, assumem em si os nomes das coisas significados e não são mais chamados apenas água, pão ou vinho, mas também, regeneração ou o lavar com água e o corpo e sangue do Senhor, ou símbolos e sacramentos do corpo e sangue do Senhor. Não que os símbolos se transformem nas coisas significados ou cessem de ser o que são por sua natureza. Pois de outro modo não poderiam ser sacramentos. Se fossem apenas a coisa significado, não seriam sinais.

A união sacramental. Portanto, os sinais adquirem os nomes das coisas, porque são símbolos místicos de coisas sagradas, e porque os sinais e as coisas significados estão sacramentalmente ligados; ligam-se, digo, ou unem-se pela significação mística e pela vontade e conselho daquele que instituiu os sacramentos. A água, o pão e o vinho não são sinais comuns, mas sagrados. E aquele que instituiu a água no batismo não a instituiu com a vontade e intenção de que os fiéis apenas fossem aspergidos pela água do batismo; e aquele que mandou comer o pão e beber o vinho na ceia não queria que os fiéis recebessem apenas pão e vinho sem qualquer mistério, da maneira como comem pão em suas casas, mas, que participassem espiritualmente das coisas significados, sendo pela fé verdadeiramente lavados de seus pecados e participantes de Cristo.

As seitas. Portanto, não podemos absolutamente aprovar os que atribuem a santificação dos sacramentos a não sei que propriedades e fórmulas ou ao poder de palavras pronunciadas por alguém que é consagrado e o que tem a intenção de consagrar, ou por outros acidentes quaisquer, que nem Cristo nem os apóstolos nos entregaram por palavras ou exemplo. Nem aprovamos tampouco a doutrina daqueles que falam dos sacramentos apenas como sinais comuns, não santificados nem eficazes. Nem aprovamos os que desprezam o aspecto visível dos sacramentos por causa do invisível, e assim crêem que os sinais são supérfluos porque pensam que já gozam as próprias coisas significados, como dizem que os messalianos sustentavam.

A coisa significada não está incluída nos sacramentos nem a eles ligada. Não aprovamos a doutrina daqueles que ensinam que a graça e as coisas significadas estão de tal modo ligadas aos sinais e neles incluídas que, todos aqueles que participarem externamente dos sinais, não importando que espécie de pessoas sejam, são também interiormente participantes da graça e das coisas significados.

No entanto, como não julgamos o valor dos sacramentos pela dignidade ou indignidade dos ministros, assim também não os avaliamos pela condição daqueles que os recebem. Pois, sabemos que o valor dos sacramentos depende da fé e da veracidade e exclusiva bondade de Deus. Assim como a Palavra de Deus permanece a verdadeira Palavra de Deus que, em sendo pregada, não são meras palavras repetidas, mas ao mesmo tempo, as coisas significadas ou anunciadas em palavras são oferecidas por Deus, embora os ímpios e incrédulos as ouçam e compreendam, contudo não aproveitam as coisas significadas, porque não as recebem pela verdadeira fé, assim os sacramentos, que pela Palavra consistem de sinais e de coisas significadas, continuam sendo sacramentos verdadeiros e invioláveis, significando não somente coisas sagradas mas, pelo oferecimento de Deus, as próprias coisas significadas, embora os incrédulos não percebam as coisas oferecidas. Neste caso, a culpa não é de Deus que as dá e as oferece, mas dos homens que as recebem sem fé e de modo ilegítimo, cuja incredulidade, porém, não invalida a fidelidade de Deus (Rom 3.3 ss).

O fim para o qual os sacramentos foram instituídos. Desde que o fim para o qual os sacramentos foram instituídos foi também explanado, de passagem, quando logo no começo de nossa exposição se mostrou o que eles são, não há necessidade de se fazer a repetição molesta daquilo que já foi dito. Conseqüentemente, portanto, falaremos agora, separadamente, dos sacramentos do novo povo.

20. Do santo batismo 

A instituição do batismo. O batismo foi instituído e consagrado por Deus. Primeiro João batizou, tendo imergido Cristo na água do Jordão. Dele passou para os apóstolos, que também batizavam com água. Ordenou-lhes expressamente o Senhor que pregassem o Evangelho e batizassem “em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Mat 28.19). E nos Atos disse São Pedro aos judeus que perguntaram o que deviam fazer: “... e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo” (At 2.38). Em conseqüência disso, o batismo é chamado por alguns, sinal de iniciação para o povo de Deus, visto que por ele os eleitos de Deus são consagrados a Deus.

Um só batismo. Há um só batismo na Igreja de Deus; e é suficiente ser uma só vez batizado ou consagrado a Deus. Pois o batismo, uma vez recebido, continua por toda a vida; e é o selo perpétuo de nossa adoção.

O que significa ser batizado. Ser batizado em nome de Cristo é ser arrolado, incluído e recebido na aliança e na família, e assim na herança dos filhos de Deus; sim, e nesta vida ser chamado segundo o nome de Deus, isto é, ser chamado filho de Deus; ser purificado também da impureza dos pecados, e receber a multiforme graça de Deus para uma vida nova e inocente. O batismo, portanto, retém na memória e renova o grande benefício que Deus dispensou à raça dos mortais. Pois todos nascemos na impureza do pecado e somos filhos da ira. Mas Deus, que é rico em misericórdia, nos purifica gratuitamente dos nossos pecados pelo sangue de seu Filho, e, nele nos adota como seus filhos, e por uma santa aliança nos une a si mesmo e nos enriquece com inúmeros dons, para podermos viver uma nova vida. Todas estas coisas são consignadas pelo batismo. Internamente, somos regenerados, purificados e renovados por Deus mediante o Espírito Santo; e exteriormente recebemos o selo dos maiores dons na água, pela qual são também representados os maiores benefícios, e como que colocados diante dos nossos olhos para serem observados.

Somos batizados com água. Por isso, somo batizados, isto é, lavados ou aspergidos com a água visível. Pois a água lava as impurezas, resfria e refresca os corpos quentes e cansados. E a graça de Deus realiza estas coisas para as almas, e o faz de modo invisível ou espiritual.

A obrigação do batismo. Deus também nos separa de todas as religiões e povos estranhos pelo símbolo do batismo, e nos consagra a si mesmo como sua propriedade. Confessamos, portanto, nossa fé quando somos batizados, e sujeitamo-nos a Deus pela obediência, mortificação da carne e novidade de vida, e, com isso, alistamo-nos na santa milícia de Cristo para lutarmos durante toda a nossa vida contra o mundo, Satanás e nossa própria carne. Ademais, somos batizados no corpo da Igreja para, com todos os seus membros, podermos de modo distinto, participar de uma só e da mesma religião e dos serviços mútuos.

A forma do batismo. Cremos que a mais perfeita forma de batismo é aquela pela qual Cristo foi batizado e pela qual os apóstolos batizaram. Aquilo, portanto, que pelo expediente do homem foi acrescentado posteriormente, e usado na Igreja, não consideramos necessário à perfeição do batismo. Por exemplo, o exorcismo, o uso de velas acesas, óleo, sal, cuspo e outras coisas semelhantes como a idéia de que o batismo deve ser administrado duas vezes por ano com um grande número de cerimônias. Cremos que um só batismo da Igreja foi santificado na primeira instituição realizada por Deus, e que ele é consagrado pela Palavra, e é também eficaz ainda hoje, em virtude da primeira bênção de Deus.

O ministro do batismo. Ensinamos que o batismo não deve ser administrado na Igreja por mulheres ou por parteiras. São Paulo vetou à mulher os ofícios eclesiásticos. E o batismo pertence aos ofícios eclesiásticos.

Anabatistas. Condenamos os anabatistas, que negam que as criancinhas recém-nascidas dos fiéis devam ser batizadas. Mas, segundo o ensino evangélico, “dos tais é o Reino de Deus”, e as mesmas se encontram na aliança de Deus. Por que, então, não deve o sinal da aliança de Deus ser conferido a elas? Por que não devem aqueles que são propriedade de Deus e estão na sua Igreja ser iniciados pelo santo batismo? Condenamos os anabatistas em outras das suas doutrinas peculiares, que eles sustentam em oposição à Palavra de Deus. Não somos, portanto, anabatistas e nada temos em comum com eles.

21. Da santa Ceia do Senhor 

A Ceia do Senhor. A Ceia do Senhor - também chamada Mesa do Senhor e Eucaristia, isto é, Ação de Graças - é em geral chamada ceia porque foi instituída por Cristo em sua última ceia, e ainda a representa, e porque nela os fiéis são espiritualmente alimentados e dessedentados.

O autor e consagrador da Ceia. O autor da Ceia do Senhor não é nenhum anjo ou homem, mas o próprio Filho de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo, que primeiro a consagrou para sua Igreja. Essa consagração ou bênção ainda permanece entre todos quantos celebram não outra ceia, mas aquela mesma, que o Senhor instituiu e na qual eles recitam as palavras da Ceia do Senhor, e em tudo voltam o olhar com verdadeira fé para o único Cristo, e recebem, como de suas mãos, aquilo que recebem pelo ministério dos ministros da Igreja.

Um memorial das bênçãos de Deus. Por este rito sagrado o Senhor deseja manter em viva lembrança a maior bênção que concedeu aos mortais, a saber, que pelo dom do seu corpo e pelo derramamento do seu sangue ele perdoou todos os nossos pecados e nos redimiu da morte eterna e do poder do Diabo, e agora nos alimenta com a sua carne e nos dá a beber o seu sangue, os quais, recebidos espiritualmente com verdadeira fé, nos alimentam para a vida eterna. E essa bênção tão grande se renova tantas vezes quantas é celebrada a Ceia do Senhor. Eis o que disse o Senhor: “Fazei isto em memória de mim”. Esta santa Ceia sela, também, para nós, que o próprio corpo de Cristo foi verdadeiramente entregue por nós, e seu sangue vertido para remissão dos nossos pecados, a fim de que em nada a nossa fé venha a vacilar.

O sinal e a coisa significada. E isto é visivelmente representado de modo exterior por este sacramento pelo ministrante e, como que exposto aos olhos para ser contemplado, aquilo que pelo Espírito Santo é concedido interiormente na alma de maneira invisível. O pão é exteriormente oferecido pelo ministro, e ouvem-se as palavras do Senhor: “Tomai, comei; este é o meu corpo”; e “Recebei e reparti entre vós. Bebei dele todos; porque isto é o meu sangue”. Portanto, os fiéis recebem o que é dado pelo ministro do Senhor, e comem o pão do Senhor e bebem do cálice do Senhor. Ao mesmo tempo, pela obra de Cristo por meio do Espírito Santo, interiormente recebem também a carne e o sangue do Senhor e deles se alimentam para a vida eterna. Pois a carne e o sangue de Cristo são o verdadeiro alimento e a verdadeira bebida para a vida eterna; e Cristo mesmo, desde que foi entregue por nós e é nosso Salvador, é o principal elemento na Ceia, e não permitimos que nenhuma outra coisa seja colocada em seu lugar.

Mas, para que se compreenda mais retamente e com clareza corno a carne e o sangue de Cristo são o alimento e a bebida dos fiéis, e são recebidos pelos fiéis para a vida eterna, acrescentaríamos estas poucas coisas. Há mais de uma espécie de comer. Há o comer corporal, pelo qual o alimento é posto pelo homem na boca, mastigado com os dentes e deglutido para o estômago. No passado, os cafarnauenses acharam que a carne do Senhor devia ser comida desse modo, mas são refutados pelo próprio Senhor, em João, cap. 6. Desde que a carne de Cristo não pode ser comida corporalmente, sem infâmia e selvageria, assim ela não é alimento para o estômago. Todos os homens são obrigados a admitir isso. Desaprovamos, portanto, o cânon nos decretos do papa, Ego Berengariust (De Consecrat., Dist. 2). Nem a piedosa antiguidade cria, nem cremos nós que o corpo de Cristo possa ser corporalmente e essencialmente comido pela boca.

O comer o Senhor espiritualmente. Há também um comer espiritual do corpo de Cristo; não que pensemos que, por isso, o próprio alimento se mude em espírito, mas o corpo e o sangue do Senhor, embora permanecendo em sua própria essência e propriedade, nos são espiritualmente comunicados, certamente não de modo corporal, mas espiritual, pelo Espírito Santo, que aplica em nós e nos confere estas coisas que nos foram preparadas pelo sacrifício do corpo e do sangue do Senhor por nós, a saber, a remissão de pecados, o livramento e a vida eterna; de tal modo que Cristo vive em nós e nós vivemos nele, sendo que ele nos possibilita recebê-lo pela verdadeira fé para que possa tornar-se, para nós, esse alimento e bebida espirituais, isto é, nossa vida.

Cristo como nosso alimento sustenta-nos a vida. Assim como o alimento e a bebida corporal não só refazem e fortalecem nossos corpos, mas também os conservam vivos, também a carne de Cristo, entregue por nós e seu sangue vertido por nós não só refazem e fortalecem nossas almas, mas também as conservam vivas, não na medida em que sejam corporalmente comidos e bebidos, mas na medida em que nos são comunicados espiritualmente pelo Espírito de Deus, como diz o Senhor: “O pão que darei pela vida do mundo, é a minha carne” (João 6.51), e “a carne” (sem dúvida, corporalmente comida) “para nada aproveita; o espírito é o que vivifica” (v. 63). E mais: “As palavras que eu vos tenho dito, são espírito e são vida”.

Cristo recebido pela fé. E como devemos, pelo comer, receber alimento em nossos corpos para que ele atue em nós e prove a sua eficácia em nós - visto que ele não é de comum proveito quando retido fora de nós - assim é necessário que recebamos Cristo pela fé, para que ele se torne nosso e viva em nós e nós nele. Pois, ele diz: “Eu sou o pão da vida; o que vem a mim, jamais terá fome; e o que crê em mim, jamais terá sede” (João 6.35); e também: “Quem de mim se alimenta, por mim viverá... permanece em mim e eu nele” (vs. 57, 56).

Alimento espiritual. De tudo isto, fica claro que por alimento espiritual não queremos dizer algum alimento imaginário que não se sabe bem o que seja mas o próprio corpo do Senhor dado por nós, que entretanto é recebido pelos fiéis não corpórea, mas espiritualmente pela fé. Nesta questão seguimos o ensino do próprio Salvador, Cristo o Senhor, segundo João, cap. 6

O comer é necessário à salvação. E este comer da carne e beber do sangue do Senhor é tão necessário à salvação, que sem ele, nenhum homem pode ser salvo. Mas este comer e beber, espiritualmente, ocorrem também à parte da Ceia do Senhor, sempre e onde quer que o homem creia em Cristo. A isto talvez se aplique a frase de Santo Agostinho: “Por que preparas os dentes e o estômago? Crê e terás comido”.

O comer sacramental do Senhor. Além do comer altamente espiritual há também o comer sacramental do corpo do Senhor, pelo qual o crente participa não só espiritual e interiormente do verdadeiro corpo e sangue do Senhor, mas também, pela aproximação à Mesa do Senhor, recebe externamente o sacramento visível do corpo e do sangue do Senhor. Sem dúvida alguma, já antes, quando creu, recebeu o crente o alimento que lhe dá a vida, e ainda o usufrui. Portanto, quando ele agora recebe o sacramento não é que não receba algo. Pois ele progride na comunicação contínua do corpo e do sangue do Senhor, e assim sua fé se aviva e se desenvolve mais e mais, sendo revigorada pelo alimento espiritual. Enquanto vivemos, nossa fé aumenta continuamente. Ora, aquele que, externamente, recebe o sacramento com verdadeira fé, não recebe apenas o sinal, mas também, como dissemos, desfruta a própria realidade. Além disso, obedece ele à instituição e ao mandamento do Senhor, e com mente alegre rende graças pela própria redenção e a da humanidade toda, realizando uma fiel comemoração da morte do Senhor, dando testemunho diante da Igreja, de cujo corpo é membro. Assegura-se também, aos que recebem o sacramento que o corpo do Senhor foi dado e seu sangue derramado, não apenas pelos homens em geral, mas, particularmente por todo fiel comungante, para quem ele é alimento e bebida para a vida eterna.

Os incrédulos recebem o sacramento para seu julgamento. Mas, aquele que se aproxima da sagrados da Mesa do Senhor sem fé, participa somente do sacramento e não recebe a essência do sacramento, de onde provém vida e salvação; e tais pessoas participam indignamente da Mesa do Senhor. Ora, os que comem o pão e bebem o cálice do Senhor de modo não digno, tornam-se culpados do corpo e do sangue do Senhor comendo e bebendo para si mesmo condenação (I Co 11.26-29). Não se aproximando com verdadeira fé, desonram a morte de Cristo e, conseqüentemente, comem e bebem condenação para si mesmos.

A presença de Cristo na Ceia. Nós, pois, não identificamos o corpo do Senhor e seu sangue com o pão e o vinho a ponto de dizer que o próprio pão é o corpo de Cristo, exceto no sentido sacramental; ou que o corpo de Cristo está oculto corporeamente sob o pão, de modo que deve ser adorado sob a forma de pão; ou ainda que, quem quer que receba o sinal, recebe também a própria realidade. O corpo de Cristo está nos céus, à mão direita do Pai; e, portanto, nossos corações devem elevar-se para o alto e não se fixarem no pão, nem deve o Senhor ser adorado no pão. Contudo, o Senhor não está ausente de sua Igreja, quando esta celebra a Ceia. O sol, que está afastado de nós, nos céus, encontra-se, entretanto, efetivamente presente em nosso meio. Quanto mais o Sol da justiça, Cristo, embora estando ausente de nós nos céus, pelo seu corpo, não estará presente conosco, não corporal, mas, espiritualmente, pela sua operação vivificadora, como ele mesmo declarou, por ocasião da última Ceia, que haveria de estar presente conosco (João, caps. 14, 15 e 16). Decorre dai que não temos uma Ceia sem Cristo, mas uma Ceia incruenta e mística, como foi universalmente chamada pela antiguidade.

Outros propósitos da Ceia do Senhor. Além do mais, na celebração da Ceia do Senhor, somos admoestados a estarmos conscientes de cujo corpo nos tornamos membros, e portanto, a sermos uma só mente com todos os irmãos; a viver uma vida santa e a não nos corrompermos com a iniqüidade e com religiões estranhas; mas, perseverando na verdadeira fé até o fim da vida, esforçarmo-nos para alcançar a excelência da santidade de vida.

Preparação para a Ceia. Convém, portanto, que tendo de participar da Ceia, primeiro examinemo-nos a nós mesmos, segundo o mandamento do apóstolo, especialmente quanto à fé que temos, se cremos que Cristo veio para salvar os pecadores e chamá-los ao arrependimento, e se cremos que pertencemos ao número dos que foram libertados e salvos por Cristo; e se estamos resolvidos a mudar nossa vida ímpia, a fim de levarmos uma vida santa e, com o auxílio do Senhor, a perseverar na verdadeira religião e na harmonia com os irmãos, e a render graças devidas a Deus pelo seu livramento.

A observância da Ceia com pão e vinho. Julgamos que o rito, a maneira ou forma da Ceia mais simples e excelente seja aquela que mais se aproxime da primeira instituição do Senhor e da doutrina dos apóstolos. Consiste na proclamação da Palavra de Deus, em orações piedosas, na ação do Senhor mesmo, e em sua repetição, comendo do corpo do Senhor, e bebendo de seu sangue; relembrando a morte do Senhor e ele fiel ação de graças; e numa santa participação na união do corpo da Igreja.

Desaprovamos, pois, os que privaram os fiéis de um dos elementos do sacramento, a saber, do cálice do Senhor. Estes pecam seriamente contra a ordem do Senhor, que diz: “Bebei dele todos”; o que ele não disse de modo tão expresso a respeito do pão.

Não estamos discutindo, agora, que espécie de missa existiu outrora entre os antigos, se deve ser tolerada ou não. Mas, dizemos isto abertamente: a missa agora usada em toda a Igreja Romana foi abolida em nossas igrejas por muitas e boas razões, as quais, para sermos breve, não enumeramos agora em pormenores. Não poderíamos aprovar a mudança de uma ação salutar em um espetáculo inútil, e num meio de alcançar mérito, e celebrado por um preço. Nem poderíamos aprovar a afirmação de que na mesma, o sacerdote efetua o próprio corpo do Senhor, e realmente o oferece pela remissão dos pecados dos vivos e dos mortos, e ainda para a honra, veneração e lembrança dos santos no céu, etc. 

22. Do culto e das reuniões na Igreja 

Como deve ser o culto. Embora se permita a todos os homens lerem as Escrituras particularmente em casa, pela instrução edificando-se mutuamente na verdadeira religião, no entanto, para que a Palavra de Deus seja anunciada convenientemente ao povo, e se façam publicamente orações e súplicas, bem como sejam os sacramentos administrados de modo próprio, e se levantem ofertas para os pobres e para o pagamento de todas as despesas da Igreja, e para a conservação das relações sociais, é muito necessário que se mantenham as reuniões de culto ou da Igreja. Pois, é certo que na Igreja apostólica e primitiva, havia tais assembléias, freqüentadas por todos os piedosos.

As reuniões para culto não devem ser negligenciadas. Todos quantos negligenciam as reuniões de culto, delas ficando ausentes, desprezam a verdadeira religião, devendo ser exortados pelos pastores e magistrados piedosos para não continuarem ausentes dos cultos.

As reuniões devem ser públicas. As reuniões da Igreja não devem ser ocultas ou às escondidas, mas públicas e bem freqüentadas, a não ser que a perseguição movida pelos inimigos de Cristo e da Igreja não permita que sejam públicas. Pois, sabemos como sob a tirania dos imperadores romanos, as reuniões da Igreja Primitiva realizavam-se em lugares secretos.

Lugares decentes de reunião. Além disso, os lugares onde os fiéis se congregam devem ser decentes, e em tudo próprios para a Igreja de Deus. Portanto, devem-se escolher prédios com bastante espaço ou templos, mas expurgados de tudo o que não seja adequado a uma Igreja. E tudo deve concorrer para o decoro, a necessidade e a piedosa decência, a fim de que nada fique faltando, nada que seja indispensável ao culto e às obras necessárias da Igreja.

Nas reuniões, devem-se observar a modéstia e a humildade. E como cremos que Deus não habita em templos feitos por mãos, também sabemos que, por causa da Palavra de Deus e do uso sagrado, os lugares dedicados a Deus e ao seu culto não são profanos, mas sagrados, e os que neles estão presentes devem conduzir-se com reverência e com modéstia, reconhecendo que se encontram em lugar sagrado, na presença de Deus e de seus santos anjos.

A verdadeira ornamentação dos santuários. Portanto, todo aparato, orgulho e tudo o que seja impróprio à humildade, à disciplina e à modéstia cristãs, deve ser banido dos santuários e lugares de oração dos cristãos. Pois, a verdadeira ornamentação das igrejas não consiste em marfim, ouro e pedras preciosas, mas na frugalidade, na piedade e nas virtudes daqueles que estão na Igreja. Que todas as coisas sejam feitas com decência e ordem na igreja e, finalmente, que todas as coisas concorram para a edificação.

Culto na linguagem comum. Calem-se, pois, todas as línguas estranhas nas reuniões de culto, e sejam todas as coisas expressas na língua do povo, compreendida por todas as pessoas presentes.

23. Das orações da Igreja, do cântico e das horas canônicas 

Vernáculo. Certo é que se permite a quem quer que seja orar em particular em qualquer língua que entenda, mas as orações públicas nas reuniões de culto devem ser feitas em vernáculo, a língua conhecida do povo. Oração. Que todas as orações dos fiéis sejam dirigidas somente a Deus, pela mediação única de Cristo, procedentes da fé e do amor. O sacerdócio de Cristo, o Senhor, e a verdadeira religião proíbem invocar os santos no céu, ou usá-los como intercessores. Devem-se fazer orações pelos magistrados, pelos reis e por todos quantos estão investidos de autoridade, pelos ministros da Igreja e por todas as necessidades das igrejas. Em calamidades, especialmente em se tratando da Igreja, deve-se orar sem cessar, tanto em particular como publicamente.

Oração livre. Ademais, deve a oração ser voluntária, sem constrangimento e não buscar recompensa. Não convém mesmo que se limite, supersticiosamente a oração a um lugar, como se não fosse permitido orar em qualquer lugar, exceto num templo. Nem é necessário que as orações públicas sejam as mesmas quanto à forma e ao tempo, em todas as igrejas. Que cada igreja use de liberdade neste sentido. Diz Sócrates, em sua história: “Em todas as regiões do mundo não encontrareis duas igrejas, que concordem inteiramente quanto à oração” (Hist. ecclesiast. V. 22,57). Os autores de tais diferenças - é de supor-se - foram aqueles, que se encontravam à frente das igrejas em certas ocasiões. No entanto, se concordam, recomenda-se com insistência que o exemplo seja imitado por outras.

O método para as orações públicas. Como em todas as coisas, também nas orações públicas deve haver um padrão, a fim de que não se tornem longas demais e cansativas. A maior parte das reuniões de culto deve, portanto, destinar-se ao ensino evangélico, tomando-se o cuidado para que a congregação não se aborreça com as orações muito longas, de forma que ao chegar a hora de ouvir a pregação do Evangelho, os presentes, já exaustos, deixem a reunião ou queiram suprimi-la. Para tais pessoas o sermão parece muito longo, quando de outra forma, seria breve. Convém pois, que os pregadores saibam manter a medida.

Cântico. De igual forma, deve o cântico ser usado com moderação no culto. O Cântico chamado Gregoriano encerra muitas coisas tolas; daí com justa razão ser ele rejeitado por muitas de nossas igrejas. Não se deve condenar as igrejas, que embora tendo bom sermão não têm um bom cântico. Nem todas podem contar com a vantagem de ter boa música. Sabemos pelo testemunho da antiguidade que se o hábito de cantar é muito velho nas Igrejas Orientais, só tardiamente foi aceito no Ocidente.

Horas canônicas. A antiguidade nada conhecia das horas canônicas, isto é, das orações preparadas para certas horas do dia, cantadas ou recitadas pelos papistas, o que se comprova pelos seus breviários e por outras fontes. Há nelas não poucos absurdos, dos quais nada direi mais; são elas, com razão, omitidas pelas igrejas que colocaram em seu lugar coisas benéficas para toda a Igreja de Deus.

24. Dos dias santos, dos jejuns e da escolha dos alimentos 

O tempo necessário para o culto. Embora não esteja a religião limitada pelo tempo, contudo não pode ser cultivada ou praticada sem distribuição e arranjo próprio do tempo. Toda igreja, portanto, escolhe determinado horário para as orações públicas, a pregação do Evangelho e a celebração dos sacramentos, não sendo permitido a ninguém transtornar esse horário da igreja a seu bel prazer. Pois, a não ser que algum tempo livre seja reservado ao exercício da religião, sem dúvida os homens absorvidos pelos seus negócios, estariam afastados dela.

O Dia do Senhor. Por isso vemos que nas igrejas antigas não havia apenas certas horas da semana destinadas às reuniões, mas que também o Dia do Senhor, desde o tempo dos apóstolos, fora separado para as mesmas, e para o santo repouso, prática essa, acertadamente preservada por nossas igrejas para fins de culto e serviço de amor.

Superstição. Neste ponto, entretanto, não cedemos às observâncias dos judeus e às superstições. Pois, não cremos que um dia seja mais santo do que outro, nem pensamos que o repouso em si mesmo seja aceitável a Deus. Além disso, guardamos o Dia do Senhor, e não o sábado como livre observância.

As festas de Cristo e dos santos. Ademais, se na liberdade cristã, as igrejas celebram de modo religioso a lembrança do nascimento do Senhor, a circuncisão, a paixão, a ressurreição e sua ascensão ao céu, bem como o envio do Espírito Santo sobre os discípulos, damos-lhes plena aprovação. Não aprovamos, contudo, as festas instituídas em honra de homens ou dos santos. Os dias santificados têm a ver com a primeira Tábua da Lei e só a Deus pertencem. Finalmente, os dias santificados, instituídos em honra dos santos, os quais abolimos, têm muito de absurdo e inútil, e não devem ser tolerados. Entretanto, confessamos que a lembrança dos santos, em hora e lugar apropriados, pode ser recomendada de modo aproveitável ao povo em sermões, e os seus santos exemplos, apresentados como dignos de serem imitados por todos.

Jejum. Ora, quanto mais seriamente a Igreja de Cristo condena a gula, a embriaguez e toda a espécie de lascívia e intemperança, tanto mais e com insistência, recomenda-nos o jejum cristão. Pois, jejuar nada mais é do que a abstinência e moderação dos piedosos e uma disciplina, cuidado e castigo de nossa carne, exercitados segundo a necessidade do momento, pelos quais nos humilhamos diante de Deus, privando nossa carne de seu combustível, de modo que possa mais espontânea e facilmente obedecer ao Espírito. Portanto, aqueles que não dão atenção a tais coisas não jejuam, mas imaginam que o fazem se abarrotam o estômago uma vez por dia e a certa hora ou em horário prescrito abstêm-se de certos alimentos, pensando que, pelo fato de terem praticado essa obra agradam a Deus e estão fazendo algo de bom. O jejum vem a ser um auxílio para as orações dos santos e para todas as virtudes. Mas, como se vê nos livros dos profetas, o jejum dos judeus, que se abstinham de alimento, não porém da iniqüidade, não agradava a Deus.

Jejum público e particular. Há jejum público e pessoal. Nos tempos antigos celebravam-se jejuns públicos, em tempos de calamidade ou em situações difíceis da Igreja. Abstendo-se totalmente de alimento até o anoitecer, dedicavam-se todo o tempo a santas orações, ao culto a Deus e ao arrependimento. Eles diferiam pouco do luto, havendo freqüente menção do mesmo nos Profetas, especialmente em Joel, cap. 2. Tal jejum deve ser observado ainda hoje, sempre que a Igreja se encontre em situação difícil. Os jejuns particulares podem ser praticados por qualquer um de nós, quando se sente afastado do Espírito. Pois, dessa maneira, priva-se a carne de seu combustível.

Características do jejum. Todo jejum deve partir de um espírito livre, espontâneo e realmente humilde, e não simulado, só para conquistar o aplauso ou favor dos homens, e muito menos para que por meio dele pretenda o homem ser merecedor de justiça. Mas, que cada um jejue para este fim - não dar lugar aos desejos da carne e servir a Deus mais fervorosamente.

Quaresma. O jejum da Quaresma tem o testemunho dos antigos, mas não dos escritos apostólicos, pelo que não deve e não pode ser imposto aos fiéis. É certo que no princípio havia várias formas ou costumes de jejum. Por isso, diz Irineu, escritor muito antigo: “Uns pensam que se deve observar o jejum somente um dia, outros, dois dias, outros mais dias, e alguns, quarenta dias. Tal diversidade na observância do jejum não começou em nossos tempos, porém, muito antes de nós por aqueles, suponho, que não se apegavam simplesmente ao que lhes havia sido entregue desde o princípio, mas passaram a outro costume por negligência ou ignorância” (Fragm. 3, ed. Stieren, I, 824 s). Além disso, Sócrates, o historiador, diz: “Visto que não se encontra nenhum texto antigo acerca deste assunto, penso que os apóstolos o deixaram à opinião de cada pessoa, de modo que cada qual pudesse fazer o que é bom, sem temor ou constrangimento” (Hist. ecclesiast, V. 22,40).

A escolha dos alimentos. Quanto à escolha dos alimentos, julgamos que no jejum se deve negar à carne tudo o que possa torná-la mais arrogante e deleitá-la mais, aguçando-lhe o desejo de peixe, ou carne, ou condimentos, ou de guloseimas e bons vinhos. Além do mais, sabemos que todas as criaturas de Deus foram feitas para o uso e serviço dos homens. Tudo o que Deus fez é bom, devendo ser usado no temor de Deus e com moderação (Gen 2.15 s). Diz o apóstolo: “Todas as coisas são puras para os puros” (Tit I.15), e mais: “Comei de tudo o que se vende no mercado, sem nada perguntardes por motivo de consciência” (I Co 10.25). O mesmo apóstolo chama a doutrina daqueles que ensinam abstenção de carnes “doutrina de demônios”; pois “... alimentos, que Deus criou para serem recebidos, com ações de graças, pelos fiéis, e por quantos conhecem plenamente a verdade; pois, tudo o que Deus criou é bom e, recebido com ações de graça, nada é recusável” (I Tim 4.1 ss).

Seitas. Portanto, condenamos inteiramente os tacianos e os encratitas, bem como todos os discípulos de Eustátio, contra quem foi convocado o Sinodo Gangrense.

25. Da catequese, do conforto e das visitas aos doentes 

A juventude deve ser instruída na piedade. O Senhor ordenou ao seu povo antigo que tivesse o maior cuidado no sentido de que a mocidade, desde a infância, fosse devidamente instruída, e mais do que isso, expressamente ordenou em sua Lei, que a ensinasse e lhe interpretasse os mistérios dos sacramentos. Sabe-se pelos escritos dos evangelistas bem como dos apóstolos que não é menor o interesse de Deus hoje, pela juventude do povo da nova aliança, pois claramente nos dá testemunho disso, dizendo: “Deixai vir a mim os pequeninos, não os embaraces, porque dos tais é o reino de Deus” (Mc 10.14). Por isso, os pastores das igrejas agem de maneira a mais sábia, quando desde cedo e com cuidado, catequizam a juventude, transmitindo-lhe os primeiros fundamentos da fé, fielmente ensinando-lhe os rudimentos da nossa religião pela explicação dos Dez Mandamentos, do Credo Apostólico, da Oração Dominicial e da doutrina dos sacramentos, com outros princípios semelhantes e tópicos principais da nossa religião. Que a Igreja mostre a sua fé e diligência trazendo as crianças para serem catequizadas, desejosa e feliz de ter seus filhos bem instruídos.

A visitação dos doentes. Visto que os homens nunca estão mais expostos às mais penosas tentações do que quando enfraquecidos por enfermidades do espírito ou do corpo, sendo afligidos por elas, não há dúvida de que nada é mais próprio aos pastores das igrejas do que zelar com o maior cuidado pelo bem-estar do rebanho, em doenças ou fraquezas. Portanto, que visitem os enfermos, prontamente, e que sejam chamados em tempo pelos doentes, se as circunstâncias assim o exigirem. Que os confortem e confirmem na verdadeira fé, ajudando-os a lutar contra as perniciosas sugestões de Satanás. Devem também orar pelos doentes no lar, e se necessário, orar por eles também no culto público; e cuidem para que sintam felizes ao partir desta vida. Dissemos anteriormente, que não aprovamos a visitação papista ao doente com a extrema unção, por ser absurda, não tendo a aprovação das Escrituras canônicas.

26. Do sepultamento dos fiéis e do cuidado que se deve ter com os mortos;
do purgatório e da aparição de espíritos

O sepultamento dos corpos. Sendo os corpos dos fiéis o templo do Espírito Santo, que seguramente cremos hão de ser ressuscitados no último dia, as Escrituras mandam que sejam entregues à terra, honrosamente e sem superstição, e também que se façam referências honrosas aos santos, que dormiram no Senhor, bem como se cumpram todos os deveres de piedade familiar para com suas viúvas e órfãos. Não ensinamos que se tenha qualquer outro cuidado com os mortos. Portanto, damos ênfase ao fato de que desaprovamos os cínicos, que negligenciavam os corpos dos mortos e descuidada e desdenhosamente os lançavam à terra, nunca pronunciando uma boa palavra acerca do falecido, ou se preocupando com os seus que ficaram.

O cuidado pelos mortos. Por outro lado, não aprovamos aqueles que se preocupam excessiva e indevidamente com os mortos; que, à semelhança dos pagãos, lamentam os seus mortos (embora não censuremos o luto moderado, que o apóstolo permite em I Tes 4.13, julgando até desumano não entristecer-se alguém de modo nenhum); e que oferecem sacrifícios pelos mortos, murmuram certas orações, não sem paramento, com o fim de, por meio de tais cerimônias, libertar os entes queridos dos tormentos em que foram imersos pela morte, e pensam serem capazes assim de libertá-los por meio de tal magia.

O estado da alma que deixou o corpo. Cremos que os fiéis, depois da morte do corpo, vão diretamente para Cristo e, portanto, não há necessidade de sufrágios e orações dos vivos pelos mortos, nem de seus ofícios. Igualmente, cremos que os incrédulos são imediatamente lançados no inferno, do qual não há saída possível para os ímpios por quaisquer ofícios dos vivos.

Purgatório. O que alguns ensinam a respeito do fogo do purgatório se opõe à fé cristã, a saber, “creio no perdão de pecados e na vida eterna”, e à perfeita purificação mediante Cristo, bem como a estas palavras de Cristo, nosso Senhor: “Em verdade, em verdade vos digo: Quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida” (João 5.24). E estas: “Quem já se banhou não necessita de lavar senão os pés; quanto ao mais está todo limpo” (João 13.10).

A aparição de espíritos. No tocante aos espíritos, ou às almas dos mortos, que algumas vezes aparecem aos vivos e pedem a estes certos trabalhos, pelos quais possam ser libertados, incluímos tais aparições entre os ludíbrios, as artimanhas e os enganos do Diabo, que, como pode transformar-se em anjo de luz, assim se esforça para, ou transtornar a verdadeira fé, ou lançar dúvida sobre a mesma. No Velho Testamento, o Senhor proibiu a busca da verdade com os mortos e toda espécie de contacto com os espíritos (Deut 18.11). Ao rico glutão, que estava em tormentos, como narra a verdade evangélica, se negou a faculdade de voltar a seus irmãos. Assim diz o divino oráculo: “Eles têm Moisés e os profetas; ouçam-nos. Se não ouvem a Moisés e aos profetas, tampouco se deixarão persuadir, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos” (Luc 16.29 ss) 

27. Dos ritos, cerimônias e coisas indiferentes 

Cerimônias e ritos. Ao povo do Velho Testamento foram dadas no passado, certas cerimônias, como uma espécie de instrução para os que estavam sob a Lei, como sob um pedagogo ou tutor. Mas, quando veio Cristo, o Libertador, e a Lei foi abolida, nós os fiéis, não estamos mais debaixo da Lei (Rom 6.14), e as cerimônias desapareceram; por isso os apóstolos não quiseram conservá-las ou restaurá-las na Igreja de Cristo, a tal ponto que, abertamente declararam não desejarem pôr nenhuma carga sobre a Igreja. Portanto, pareceria estarmos introduzindo e restaurando o Judaísmo, se multiplicássemos as cerimônias e os ritos na Igreja de Cristo, segundo o costume da Igreja antiga. Por isso, de nenhum modo aprovamos a opinião daqueles que pensaram que a Igreja de Cristo deve ser regulamentada por diferentes ritos, como uma espécie de treinamento. Pois, se os apóstolos não quiseram impor ao povo cristão cerimônias ou ritos, que foram indicados por Deus, quem, pergunto eu, em perfeito juízo haveria de impor-lhes invenções imaginadas pelo homem? Quanto mais aumenta o volume de ritos na Igreja, tanto mais ela se despoja da liberdade cristã, de Cristo, e de sua fé nele, enquanto o povo busca nos ritos aquilo que deveria buscar somente pela fé no Filho de Deus, Jesus Cristo. Por conseguinte, basta aos crentes, alguns ritos moderados e simples, que não sejam contrários à Palavra de Deus.

Diversidade de ritos. Se nas igrejas se encontram ritos diferentes, ninguém deve pensar que por isso estejam as mesmas em desacordo. Diz Sócrates: “Seria impossível colocar junto no papel todos os ritos das igrejas, em todas as cidades e países. Nenhuma religião observa os mesmos ritos, ainda que reconheça a mesma doutrina a respeito deles. Pois, os que pertencem à mesma fé discordam entre si mesmos acerca dos ritos” (Hist. ecclesiast. V. 22, 30, 62). Isto é o que diz Sócrates. E nós, hoje, tendo em nossas igrejas diferentes ritos na celebração da Ceia do Senhor e em algumas outras coisas, contudo não discordamos na doutrina e na fé; nem é, por esse fato, rasgada em pedaços a unidade e a comunidade de nossas igrejas. Sempre tiveram as igrejas sua liberdade em tais ritos, como sendo coisas indiferentes. O mesmo fazemos nós hoje.

Coisas indiferentes. Mas, ao mesmo tempo as admoestamos a se manterem em guarda, a fim de não considerarem indiferentes coisas que de fato não o são, como querem alguns em relação à missa e ao uso das imagens em lugares de culto. “Indiferente”, escreveu São Jerônimo a Santo Agostinho, “é aquilo que não é bom nem mau, de modo que, se você o fizer ou não fizer, não é justo nem injusto”. Portanto, quando para dar validade às coisas indiferentes se torce a confissão de fé, deixam as mesmas de ser indiferentes. São Paulo mostra que está certo o homem comer carne, desde que alguém não o informe de que foi oferecida aos ídolos; pois, de outra forma estaria errado, visto que comendo, parece aprovar a idolatria (I Co 8.9 ss; 10.25 ss).

28. Dos bens da Igreja 

Os bens da Igreja e seu justo uso. A Igreja de Cristo conta com recursos provindos da generosidade de príncipes e da liberalidade dos fiéis, que doaram seus bens à Igreja. Necessita a Igreja de tais recursos, e desde os tempos antigos têm-nos tido para a manutenção de tudo o que lhe é necessário. Ora, o verdadeiro uso dos bens da Igreja era outrora, e ainda o é, o de manter o ensino nas escolas e nas reuniões religiosas, bem como o culto, ritos e edifícios sagrados; manter mestres, discípulos e ministros, juntamente com outras coisas necessárias, e especialmente ajudar a alimentar os pobres. Administração. Além disso, homens sábios e tementes a Deus, destacados na administração dos negócios devem ser escolhidos para administrar legitimamente os bens da Igreja.

O mau uso dos bens da Igreja. Mas, se por uma calamidade ou por causa da ousadia, ignorância ou avareza de alguns, os bens da Igreja forem malbaratados, devem ser restaurados para o uso sagrado por homens fiéis e sábios. Pois, não se pode ser conivente com o abuso, o que seria o maior sacrilégio. Portanto, ensinamos que as escolas e instituições, que se tenham corrompido na doutrina, no culto e na moral, devem ser reformadas, e que o serviço aos pobres deve ser organizado de uma forma responsável, prudente e de boa fé.

29. Do celibato, casamento e administração dos negócios domésticos. 

Pessoas solteiras. Os que têm do céu o dom do celibato, de modo que, de coração ou de toda a alma podem ser puros e continentes e não são levados pelos ardores do sexo, sirvam ao Senhor nessa vocação, enquanto se sentirem dotados do dom divino. E não se julguem melhores do que os outros, mas sirvam o Senhor continuamente em simplicidade e humildade (I Co 7.7 ss). Estes estão mais aptos a lidar com as coisas divinas do que aqueles que se distraem com os interesses particulares de uma família. Mas, no caso de ser-lhes retirado o dom, e sentirem um durável ardor, lembrem-se das palavras do apóstolo: “É melhor casar do que viver abrasado” (I Co 7.9).

Casamento. O casamento (que é o remédio da incontinência e é a própria continência) foi instituído pelo Senhor Deus mesmo, que o abençoou da maneira mais generosa, e que desejou que o homem e a mulher se unissem um ao outro inseparavelmente e vivessem juntos em completo amor e concórdia (Mat 19.4 ss). Sobre isso sabemos o que disse o apóstolo: “Digno de honra entre todos seja o matrimônio, bem como o leito sem mácula” (Heb 13,4). E outra vez: “Se a virgem se casar, por isso não peca” (I Co 7.28).

As seitas. Condenamos, portanto, a poligamia e os que condenam o segundo casamento.

Como deve ser contraído o casamento. Ensinamos que o casamento deve ser contraído legalmente no temor do Senhor, e não contra as leis, que proíbem certos graus de consangüinidade, a fim de que o casamento não seja incestuoso. O casamento deve ser feito com o consentimento dos pais, ou dos que estão em lugar dos pais, e acima de tudo para o fim para o qual o Senhor instituiu o casamento. Além disso, devem conservar-se santos, com a máxima fidelidade, piedade, amor e pureza dos que se uniram. Portanto, evitem-se as discussões, as dissenções, a lascívia e o adultério.

Fórum matrimonial. Devem estabelecer-se cortes legais na Igreja, tendo juizes santos, que possam cuidar dos casamentos, reprimir a impureza e a imprudência, diante dos quais se resolvam os conflitos matrimoniais.

A criação dos filhos. Devem os filhos ser criados pelos pais, no temor do Senhor; e devem os pais prover o sustento dos seus filhos, lembrando-se do que disse o apóstolo: “Ora, se alguém não tem cuidado dos seus e especialmente dos de sua própria casa, tem negado a fé, e é pior do que o descrente” (I Tm 5.8). Mas, devem principalmente ensinar a seus filhos para terem uma carreira ou profissões honestas com que possam manter-se a si mesmos. Devem conservá-los afastados da ociosidade, e em tudo inculcar neles a verdadeira fé em Deus, a fim de que, pela falta de confiança ou demasiada segurança ou pela feia avareza venham a tornar-se dissolutos, e a fracassar na vida.

Aliás, é muito certo que as obras praticadas pelos pais com verdadeira fé, mediante os deveres domésticos e administração de sua casa, são, aos olhos de Deus, santas e verdadeiramente boas obras. Não são menos agradáveis a Deus do que as orações, os jejuns e as obras de beneficência. Pois, assim ensinou o apóstolo em suas epístolas, especialmente nas dirigidas a Timóteo e a Tito. E com o mesmo apóstolo incluímos entre os ensinos de demônios a doutrina dos que proíbem o casamento e abertamente o criticam ou indiretamente o desacreditam, como se não fosse santo e puro.

Execramos também, a vida impura dos solteiros, a lascívia secreta ou às claras, e a fornicação dos hipócritas, que simulam continência, sendo os mais incontinentes de todos. A todos estes julgará Deus. Não desaprovamos as riquezas dos que as possuem, quando são piedosos e fazem bom uso delas. Mas, rejeitamos a seita dos Apostólicos, etc.

30. Da magistratura 

A magistratura vem de Deus. A magistratura em todas as suas formas foi instituída por Deus mesmo para a paz e a tranqüilidade do gênero humano, devendo pois, ter o lugar mais importante no mundo. Se o magistrado for inimigo da Igreja poderá entravar a sua ação e perturbá-la muito; mas sendo amigo ou membro da Igreja, torna-se o mais útil e excelente entre os seus membros, podendo ajudá-la muito e dar-lhe assistência melhor do que todos os demais.

O dever do magistrado. O principal dever do magistrado é garantir e preservar a paz e a tranqüilidade pública. Indubitavelmente, ele nunca realizará isso com tanto sucesso como quando é de fato temente a Deus e religioso. Quer isso dizer, quando segundo o exemplo dos mais santos reis e príncipes do povo do Senhor, promove o magistrado a pregação da verdade e a fé sincera, extirpa as mentiras e toda a superstição, juntamente com toda impiedade e idolatria e defende a Igreja de Deus. Certamente, ensinamos que o cuidado da religião pertence especialmente ao santo magistrado.

Tenha ele, pois, em suas mãos a Palavra de Deus, tomando cuidado de que não se ensine nada contrário à mesma. Governe também o povo, que lhe foi confiado por Deus, por meio de boas leis, elaboradas segundo a Palavra de Deus, conservando-o na disciplina, no dever e na obediência. Exerça o seu ofício de magistrado, julgando com justiça. Não faça acepção de pessoas, nem aceite subornos. Proteja as viúvas, os órfãos e os aflitos. Use sua autoridade para punir os criminosos e até bani-los, bem como aos impostores e bárbaros. Pois, não é sem motivo que ele traz a espada. (Rom 13.4).

Portanto, desembainhe a espada de Deus contra todos os malfeitores, sediciosos, ladrões, homicidas, opressores, blasfemadores, perjuros, e contra todos aqueles, a quem Deus lhe ordenou punir e mesmo executar. Reprima os hereges incorrigíveis (verdadeiramente heréticos), que não cessam de blasfemar contra a majestade de Deus, e de perturbar e mesmo pôr em perigo a Igreja de Deus.

Guerra. E, se for necessário preservar pela guerra a segurança do povo, que o magistrado declare guerra em nome de Deus, desde que tenha primeiramente procurado por todos os meios possíveis fazer a paz, não podendo pois, salvar seu povo a não ser pela guerra. Quando, pela fé pratica o magistrado estas coisas, serve a Deus por aquelas obras, que são verdadeiramente boas, e recebe a bênção do Senhor.

Condenamos os Anabaptistas que, ao negarem possa o cristão exercer o ofício de magistrado, negam também que o homem possa ser, com justiça, condenado à morte pelo magistrado, ou que este possa declarar guerra, ou que se prestem juramentos ao magistrado, e coisas semelhantes.

O dever dos súditos. Como Deus efetua a segurança do povo através do magistrado, a quem deu ao mundo para ser como uma espécie de pai, assim ordena a todos os súbditos que reconheçam este favor de Deus no magistrado. Que os súditos, pois, honrem e respeitem o magistrado como ministro de Deus; que o estimem, colaborem com ele, orem por ele como por um pai, e obedeçam às suas decisões justas e legítimas. Finalmente, paguem fiel e prontamente todos os impostos e taxas e todos os demais direitos. E se a segurança pública do país e a justiça o exigirem, e vir-se o magistrado obrigado a empreender uma guerra, dêem até suas vidas e derramem o seu sangue pela segurança pública e pela do magistrado. E o façam em nome de Deus, espontaneamente, com bravura e alegria. Pois, quem se opõe ao magistrado provoca contra si mesmo a severa ira de Deus.

Seitas e sedições. Condenamos, portanto, todos quantos desprezam o magistrado - os rebeldes, os inimigos do estado, os vilões sediciosos, enfim, todos os que aberta ou astuciosamente se recusam a cumprir qualquer das obrigações, que lhes competem. Oramos a Deus, nosso mui misericordioso Pai do Céu, para que abençoe os governantes, a nós e a todo o seu povo, mediante Jesus Cristo, nosso único Senhor e Salvador, a quem seja o louvor e a glória, e as ações de graças, para todo o sempre. Amém.
FONTE: http://www.cacp.org.br/estudos/artigo.aspx?lng=PT-BR&article=881&menu=7&submenu=1

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