terça-feira, 31 de maio de 2011

Livro A Peregrina - John Bunyan (1ª Parte)

Imagem cedida do livro A peregrina de John Bunyan


Viagem de Cristiana e seus filhos à
Cidade Celestial sob a figura de um sonho


CAPÍTULO 1

O autor, em seu segundo sonho, encontra-se com o ancião Sagacidade; começa ele seu relato. Cristiana, depois da morte de seu esposo, se arrepende, e recebe uma mensagem divina que a chama à vida de peregrinação.

Agradável me foi, amados leitores, relatar-vos, tempo atrás, o sonho que tive do peregrino Cristiano e de sua arriscada viagem à Cidade Celestial, e não duvido que o meu relato os tenha sido de proveito. Nele contei o que tinham presenciado, e fiz notar o pouco dispostos que estavam a esposa e filhos de Cristiano para acompanhá-lo, chegando a tal ponto a sua repugnância que aquele viu-se obrigado a empreender sozinho a sua viagem, antes de enfrentar o perigo que o ameaçava se permanecesse mais tempo com eles na cidade de Destruição.
Desde então, as minhas numerosas ocupações impediram-me passar novamente pelo povo nativo de nosso peregrino, de modo que não pude me informar do que tinha acontecido com a sua família; porém, obrigando-me recentemente os meus negócios a passar por perto, me dirigi mais uma vez ao mesmo povoado e, ao repousar num bosque, que distava pouco da referida cidade, tive o seguinte sonho:
Vi que um ancião passava por onde estava eu recostado e, já que levávamos o mesmo caminho, me levantei para acompanhá-lo. enquanto caminhávamos, dialogamos, segundo o costume que têm os viajantes, sendo a nossa conversação sobre Cristiano e sua viagem.
—Cavalheiro— perguntei—, que povo é aquele que se encontra ali embaixo, à esquerda?
SAGACIDADE (assim se chamava)— Aquela é a cidade da destruição. É muito populosa, mas os habitantes são sumamente preguiçosos e corruptos.
—Já me parecia— disse eu—; uma vez passei por ali, e sei que lhe cabe perfeitamente o caráter que você lhe dá.
SAGACIDADE— Demasiadamente. Tomara que, sem mentir, pudesse falar melhor daquela gente!
— Vejo que você é pessoa de critério sadio e amante do que é bom. Talvez você tenha ouvido falar do que aconteceu, algum tempo atrás, naquela cidade, a um tal de Cristiano, que empreendeu uma peregrinação para as régios celestiais?
SAGACIDADE— Ouvir falar dele! É claro que sim, e também dos incômodos, penas, lutas e cativeiros que sofreu no decorrer da viagem. Além disso, devo adverti-lhe que sua boa fama tem se divulgado por toda a comarca. Poucas pessoas há que, tendo ouvido falar dele e de seus feitos, não tenha procurado o relado de sua peregrinação, e me consta que as notícias de sua perigosa viagem atraíram a outros muitos pelo mesmo caminho; porque se bem, quando ele ainda estava aqui, todos o reputavam por louco, agora que se foi, todo o mundo fala bem dele. Dizem que ali onde está agora, está muito melhor; e, de fato, muitos que não têm o valor necessário para correr os mesmos riscos, ambicionam o bem-estar por ele conquistado.
—Não devemos duvidar de sua felicidade, pois agora mora perto da Fonte da Vida, e o trabalho e a dor já se passaram. Mas, me diga, o que falam dele?
SAGACIDADE— Falam dele de forma estranha. Uns dizem que agora veste roupas brancas, com corrente de ouro em volta do pescoço, e cinge sua cabeça uma diadema de ouro engastada em pérolas. Outros, que os Resplandecentes, que lhe apareceram durante sua viagem, são agora seus companheiros, e que ali onde habita tem tanta intimidade com eles como a que aqui existe entre vizinhos. Além disso, se têm certeza que o Rei daquele país lhe tem proporcionado já uma residência rica e mais que amena em sua corte; que todos os dias come e bebe, anda e fala com ele, e que o Juiz de todos lhe pródiga sorrisos e favores. Por outra parte, alguns afirmam que seu Rei e Senhor visitará em breve estas regiões, e saberá por que os vizinhos de Cristiano o tiveram em tão pouco e tanto o escarneceram quando tomou a resolução de ser peregrino. Porque, segundo dizem, Cristiano é agora tão amado de seu Soberano, e ele se ocupa tanto das afrontas de que foi objeto, que as considera como inferidas a ele mesmo; e não é estranho, por quanto o amor que sentia pelo seu Príncipe foi o que o induziu a tão penosa viagem.
—Pois me alegro. O pobre repousa de suas fadigas, e agora colhe com regozijo o que semeou com lágrimas; já está fora do alcance de seus inimigos. Alegro-me também de que o rumor destes acontecimentos tenha chegado a esta comarca. Quem sabe se isso influirá no bem de todos os que ficaram! E o que se sabe de sua esposa e filhos? Os compadeço de verdade.
SAGACIDADE— Como! Cristiana e seus filhos? Estes, segundo todas as probabilidades, alcançarão a mesma sorte que ele; pois ainda que num princípio agiram tolamente, e não se deixaram persuadir nem pelos lágrimas nem pelas súplicas de Cristiano, posteriores reflexões acerca daquele assunto operaram maravilhas neles; assim sendo, efetuados os devidos preparativos, empreenderam a mesma carreira.
—Melhor que melhor!— exclamei—, mas, você está seguro que todos eles tomaram essa determinação?
SAGACIDADE— Pode acreditar em mim; e para maior certeza, eu me encontrava precisamente no povo quando eles partiram, motivo pelo que estou à par de tudo, e enquanto caminhamos lhe contarei todos os incidentes daquele acontecimento. Cristiana (tal seu nome desde o dia em que ela e seus filhos principiaram a vida de peregrinação), uma vez que seu marido atravessou o rio, e já não recebeu mais notícias dele, viu-se assaltada por lúgubres pensamentos, e em sua dor vertia abundantes lágrimas, pois com a partida de seu marido viu rompido o vínculo amoroso que os unia; porque, como pode alguém deixar de sentir ver-se separado dos seres queridos? Mas não foi esta a única causa da dor. Também começou Cristiana a se perguntar se seu marido na teria sido tirado dela como castigo pela conduta não decorosa que tinha observado com ele. Entregue de cheio a um fervedouro de pensamentos, viram a sua memória as asperezas que tinham caracterizado a sua conduta, o mal que tinha correspondido ao carinho de aquele que nunca deixara de ser seu fiel amigo. Abrumado já seu coração por tão tristes lembranças, seu quebrantamento subiu do pronto ao se lembrar das amargas lágrimas e os lamentos e gemidos de seu inconsolável esposo, quando ela se obstinou em não acompanhá-lo. não podia esquecer as palavras e feitos de Cristiano enquanto gemia sob o peso de sua carga, e isso, voltando-se contra seu coração, o desgarrava por completo. Sobre tudo, vibrava em seus ouvidos com lastimosos acentos aquele doloroso grito que costumava lançar: "O que devo fazer para ser salvo?"
Não podendo reprimir mais a angústia que a embargava, participou os seus filhos, dizendo:— Filhos meus, estamos perdidos. Como conseqüência de meu pecado, nos vemos separados de vosso pai. Suplicou-me que o acompanhássemos, mas eu não quis ir, e assim impedi que vocês alcançassem a vida eterna.
Quando isto ouviram, os rapazes começaram a chorar, manifestando desejos de ir após seu pai.
—Oxalá!— exclamou Cristiana— tivéssemos a felicidade de acompanhá-lo! melhor sorte teríamos que a que agora, segundo parece, nos caberá; pois, ainda que antes loucamente me figurava que os tormentos de vosso pai procediam de um vão capricho ou de uma excessiva melancolia, agora me consta que a sua origem é muito diferente; ou seja, que tinha sido entregue a ele a Luz das luzes, com a ajuda da qual fugiu, segundo vejo, dos laços da morte."
—Aí de nós!— exclamaram todos chorando amargamente.
A noite seguinte, Cristiana sonhou ver aberto diante dela um largo rolo de pergaminho, no qual estavam escritas todas as suas ações. O aspecto desta lista parecia-lhe sumamente sombrio e, embora estivesse dormida, não pôde menos que lançar um grito, bradando: "Senhor, sé propício a esta pecadora!", o que foi ouvido pelos seus filhos.
Depois disto, parecia-lhe ver ao lado de seu leito dois seres de ma índole, que diziam:— O que faremos desta mulher, já que, tanto dormida quanto acordada, pede misericórdia? Se lhe é permitido continuar deste jeito, a perderemos como temos perdido já seu marido. De uma forma ou de outra, é preciso distraí-la para que deixe de pensar na outra vida, pois, caso contrário, nada neste mundo poderá impedi-la de ser peregrina.
Presa de grande horror, acordou Cristiana, tremendo e suando com profusão; porém tendo adormecido novamente, seus sonhos tomaram outra forma. Desta vez pareceu-lhe ver seu esposo na glória, rodeado de seres imortais, tendo em sua mão uma harpa, a qual tangia diante de um, assentado num trono, com um arco-íris sobre sua cabeça. Depois o viu inclinar-se humildemente, voltando seu rosto para o escabelo que havia sob os pés do Rei, e dizer:— Com todo o meu coração dou graças a meu Senhor e Rei por me ter trazido a este lugar—. Então os circunstantes alçaram a voz e tangeram suas harpas; mas ninguém podia compreender suas palavras senão somente Cristiano e seus companheiros.
Na manhã seguinte, depois de ter orado a Deus e falar um tempo com seus filhos, ouviu Cristiana que chamavam fortemente à porta.
—Avante— disse—, se vem você em nome de Deus.
—Amém— respondeu o recém chegado; e abrindo a porta, saudou com as palavras:
— A paz seja nesta casa— Depois prosseguiu dizendo:— Sabes, Cristiana, com que objeto venho?
O coração dela ardia em desejos de saber de onde e por que ele vinha; porém, cobrindo o rubor de seu rosto, se manteve calada.
—Meu nome é Segredo— disse o visitante—, e moro com os que são da alta esfera. Naquele lugar corre o rumor de que anseias dirigir-te para lá, e que te pesa o mal que fizeste ao teu marido, endurecendo teu coração para não acompanhá-lo, e criando estes teus filhos na ignorância. O Misericordioso me enviou a ti, Cristiana, para te dizer que é um Deus pronto a perdoar e que se deleita em remir ofensas. Além disso, convida-te a entrar em sua presença e a sentar-te a sua mesa, onde te alimentará com as deliciosas refeições de sua casa, e dar-te-á a herança de Jacó teu pai. Ali reside aquele que era teu esposo, junto com legiões de companheiros, todos espíritos redimidos, que sempre contemplam o rosto de seu Deus, e se alegrarão todos de ouvir teus passos no umbral da casa de teu Pai.
 Cristiana, baixando a cabeça, ruborizava-se, enquanto seu visitante continuou falando:
—Eis aqui uma carta que te trago de parte do Rei.
Da carta, que estava escrita em letras de ouro, desprendia-se um aroma delicioso. Em seu conteúdo manifestava o Rei o desejo de que Cristiana seguisse o exemplo de seu marido, por quanto esse era o único modo de que conseguisse chegar a sua cidade e morar em sua presença com sempiterno gozo. Dominada pelas suas emoções, a mulher exclamou:
—E você quer nos levar a mim e aos meus filhos, para que vamos adorar o Rei?
Respondeu o visitante:
—O amargo tem de vir antes que o doce. Para chegar à Cidade Celestial terás que passar por penas e dificuldades, como o fez quem te precedeu. Faze o mesmo que ele: dirige-te à portinha que vês no outro extremo da planície: nela começa o caminho que vas seguir, Deus te acompanhe. Também te aconselho que guardes cuidadosamente no teu seio esta carta; leiam-na, tu e teus filhos, até que a saibais de cor, já que é um dos cânticos que devereis elevar durante todo o tempo de vossa peregrinação. Também deverás entregá-lo em tua chegada à porta celestial.
(Vi em meu sonho que o ancião, ao me relatar a história, parecia fortemente comovido; porém, recuperando a tranqüilidade, reiniciou sua narração).
Cristiana em seguida reuniu seus filhos e falou-lhes nos seguintes termos:
—Filhos meus, desde um tempo atrás, como já notastes, minha alma está sumamente afligida, a causa da morte de vosso pai; não porque no mais mínimo duvide de sua felicidade, pois estou convencida do gozo que desfruta; mas me preocupa em alto grau o estado miserável em que nos encontramos e, mais que nada, a lembrança de meu comportamento para com vosso pai. Não quis acompanhá-lo, nem deixei que o acompanhasses. Ante a evidência de minha culpa, sinto como o remorso corrói meu coração, e sem o sonho que ontem noite tive e as agradáveis esperanças que esta manhã me deu este senhor, tão amargas lembranças concluiriam com a minha existência. Vamos, filhos, arrumemo-nos e marchemos rumo a porta que nos dará entrada ao caminho, para que vejamos vosso pai e estejamos com ele e seus companheiros de viagem, segundo as leis do país celestial.
Vindo sua mãe assim disposta, as crianças prorromperam em lágrimas de gozo.
Cumprido seu encargo, o mensageiro despediu-se e eles começaram imediatamente a fazer os preparativos para a viagem.
FONTE: A Peregrina de John Bunyan

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