sexta-feira, 3 de junho de 2011

Livro A Peregrina - John Bunyan (3ª Parte)


Imagem cedida por: http://www.discursodaalma.com.br/?tag=porta-estreita


CAPÍTULO 3

Cristiana e Misericórdia dirigem-se à porta estreita, onde são recebidas.

Entretanto Cristiana, acompanhada de seus filhos e de Misericórdia, prosseguia seu caminho. Enquanto caminhavam, iniciaram o seguinte diálogo:
CRISTIANA— Amiga Misericórdia, considero como um favor inesperado que venhas fazer-me companhia por um tempo.
A jovem, que ainda era de mui tenra idade, respondeu:
—Se acreditasse que fosse vantajoso ir contigo, não voltaria jamais ao povo de que saímos.
CRISTIANA—Não temas, e une a tua sorte à nossa; bem sei eu qual será o fim de nossa peregrinação. Meu marido não trocaria sua sorte por todo o ouro do mundo. Não creio que sejas rejeitada, ainda que vás por convite meu. O Rei, quem nos mandou buscar, é tudo misericórdia. Além disso, se tens algum reparo, podes acomodar-te comigo e acompanhar-me em qualidade de serva; a tudo me disponho e tudo compartiremos, com tal que me acompanhes.
MISERICÓRDIA— Mas quem pode me assegurar que serei recebida? Se me fosse oferecida esta esperança, por incômodo que fosse o caminho, iria sem duvidar, confiando na ajuda do Todo Poderoso.
CRISTIANA— Pois ouve então, querida Misericórdia, e faze o que te falo: vem comigo à porta estreita, e ali perguntaremos mais definitivamente acerca de ti. Se não te receberem, consentirei que voltes para teu povo. Ainda te recompensarei a bondade que a mim e aos meus filhos nos manifestas acompanhando-nos deste modo.
MISERICÓRDIA— Nesse caso irei, e me conformarei com o que resulte. Tomara que o Senhor do Reino seja benévolo comigo!
Muito se alegrou Cristiana ao ouvir isto, não somente porque já tinha uma companheira, mas também porque havia persuadido esta donzela a se interessar pela própria salvação.
Caminhando juntas, Misericórdia começou a chorar.
—Por que choras tanto? —perguntou sua companheira.
Misericórdia— Aí! Quem pode não afligir-se ao considerar o estado lastimoso em que estão meus pobres parentes, que ainda permanecem em nossa cidade pecaminosa? E o que agrava a minha dor é saber que não têm quem os instrua e os advirta o que vai lhes acontecer.
Cristiana— Convêm aos peregrinos compadecer-se dos outros. Agora fazes pelos teus o que fazia meu bom Cristiano comigo; afligia-se e se lamentava porque eu não fazia caso dele; porém seu Senhor e o nosso recolheu suas lágrimas e as colocou em sua redoma, e agora tu e eu, igual que estes queridos meninos, obtemos o fruto e proveito delas. Espero que tuas lágrimas também não se perderão, pois a Palavra nos diz: "Os que semeiam em lágrimas segarão com alegria. Aquele que leva a preciosa semente, andando e chorando, voltará, sem dúvida, com alegria, trazendo consigo os seus molhos" [1].
Então cantou Misericórdia:

Seja o Bendito meu guia,
Se é sua santa vontade,
Até a porta do céu,
Monte de sua Santidade.
E não me permita nunca
De seus caminhos sair,
Nem vagar extraviada,
Ainda que deva sofrer.
Recolha a todos os meus
Que detrás de mim deixei;
Faz, Senhor, que sejam teus,
Cheios de amor e de fé.

Quando Cristiana chegou no Pântano da Desconfiança, e lembrou-se do perigo em que esteve seu esposo de perecer afogado no lodo, sentiu por um instante vacilar suas forças. O caminho apresentava-se eriçado de dificuldades e perigos, e a pesar das ordens do Rei para que o fizessem transitável, estava pior que antes.
Interrompi então o relato de meu ancião amigo para perguntá-lhe se era verdade o que se referia ao Pântano.
—Sim —respondeu—, demasiadamente verdade. Existem muitos que, fingindo-se operários do Rei, dizem que estão encarregados da reparação do caminho, e no entanto, em vez de pedras jogam lama e esterco, deixando-o pior em vez de melhorá-lo.
Diante dos obstáculos que se apresentavam, detiveram-se, vacilando Cristiana e seus filhos; porém então Misericórdia, demonstrando mais valor, disse-lhes:
—Não desconfiemos e continuemos adiantando-nos com precaução.
 E, animados com estas palavras, internaram-se no Pântano, realizando grandes esforços para atravessar o lamaçal. Cristiana esteve várias vezes em iminente perigo de cair no lodo, mas no fim conseguiram ganhar a beira oposta; uma vez a salvo, acharam de ouvir uma voz que lhes dizia: "Bem-aventurada a que acreditou, porque se cumprirão as coisas que lhe foram ditas de parte de seu Senhor".
Começando novamente a andar, Misericórdia fez então a seguinte observação:
—Se como tu eu tivesse a certeza de encontrar uma carinhosa acolhida na portinha, acho que nenhum Pântano da Desconfiança alcançaria para me desanimar.
—Bem —respondeu Cristiana—, tu conheces tua chaga e eu a minha; não é este a única complicação que acharemos antes de dar termo a nossa viagem. Os que nos propomos alcançar tão excelente glória seremos hostilizados pelos que nos aborrecem e invejam e nossa felicidade; acredita em mim.
Neste ponto Sagacidade despediu-se de mim, e eu segui sonhando. Vi os nossos peregrinos aproximar-se da porta. Uma vez frente dela, começaram a discutir a melhor forma de chamar, e o que iriam dizer ao porteiro. Por fim combinaram que Cristiana, sendo a mais velha, chamasse em nome de todos e expusesse seus desejos ao porteiro. Em seguida começou a chamar, dando grandes golpes com a aldrava da porta, como tinha feito seu esposo. Porém, a única resposta que ouviram foram os uivos de um grande cão, o que os encheu de espanto, e naquele momento não se atreveram a chamar de novo, por temor que o mastim se lançasse sobre eles. Estavam já em grande perturbação de espírito, não sabendo o que fazer; não ousavam chamar por causa do cão, e temiam retroceder por temor que o guardião da porta os visse e se irasse com eles. Decidiram-se, finalmente, a chamar de novo, o que fizeram com maior veemência que antes.
—Quem está aí? —perguntou o porteiro. O cão, ouvindo sua voz, cessou de latir e a porta foi aberta.
CRISTIANA (Inclinando-se com um gesto de reverência)— Não se ire o Senhor com suas servas, por terem tido a temeridade de chamar a sua real porta.
—De onde vindes? —perguntou-lhes o porteiro—. O que desejam?
CRISTIANA— Chegamos do mesmo lugar de onde veio Cristiano e com o mesmo objeto; isto é, se vos apraz, que nos seja aberta a entrada por esta porta para a via que conduz à Cidade Celestial. À segunda pergunta, respondo ao meu Senhor que sou Cristiana, em outro tempo esposa de Cristiano, o qual tem alcançado já a glória.
Maravilhado, o porteiro exclamou:
—Como! É peregrina agora aquela que pouco tempo atrás aborrecia semelhante vida?
—Sim, Senhor —disse ela, inclinando de novo a cabeça—, e também o são estes meus filhos.
Então a tomou pela mão e a admitiu, dizendo ao mesmo tempo:
—Deixai que as crianças venham a mim —e assim falando, fechou a porta. Logo deu ordens a um pregoeiro que havia no terraço, sobre o portal, para que celebrasse sua chegada com aclamações de júbilo e som de trombetas. Ao instante o mandado foi executado, e os ares ressoavam com suas notas melodiosas.
Entretanto, a pobre Misericórdia estava fora, tremendo e chorando, acreditando-se rejeitada. Porém, Cristiana, tendo já conseguido ser admitida juntamente com seus filhos, começou a interceder em favor de sua amiga.
—Senhor meu —disse—, ainda há lá fora da porta uma companheira minha, que vem com a mesma intenção que nós; está sumamente abatida de ânimo porque vem, no seu parecer, sem ser convidada, enquanto que eu fui chamada pelo Senhor de meu marido.
Misericórdia, que começava já a impacientar-se, e a quem cada minuto parecia-lhe uma hora, impediu que Cristiana intercedesse mais, chamando ela mesma a porta. Tão fortes batidas deu, que Cristiana sobressaltou-se.
—Quem chama? –perguntou o porteiro.
—É a minha amiga —disse a mulher.
Abrindo então a porta, olhou para fora e viu que Misericórdia tinha caído desmaiada, temendo não ser recebida.
Então, tomando-a pela mão, lhe disse:
—Moça, levanta.
—Ah, Senhor! Estou muito fraca; apenas tenho um sopro de vida.
Mas o bom Senhor respondeu-lhe:
—Há um que disse "Quando desfalecia em mim a minha alma, lembrei-me do SENHOR; e entrou a ti a minha oração, no teu santo templo" [2]. Não temas, mas levanta e di-me por que vens.
MISERICÓRDIA— Venho em busca de aquilo para o que não fui chamada, como o foi a minha amiga. Seu convite foi de parte do Rei; o meu só foi de parte dela. Por isso temo.
PORTEIRO— Rogou-te ela que viesses aqui em sua companhia?
MISERICÓRDIA— Sim, convidou-me, e como meu Senhor pode ver, aceitei. Se a graça e o perdão podem estender-se até mim, suplico que a esta vossa humilde serva lhe seja permitido participar destas bênçãos.
Tomando-a novamente pela mão, a introduziu carinhosamente pela porta, dizendo:
—Intercedo em favor de todos os que acreditam em mim, quaisquer seja a forma em que comparecem. —Então disse aos circunstantes—: Trazei alguma erva aromática e dai-a para que se restabeleça do desmaio.
Trouxeram um ramo de mirra e pronto ela voltou em si.
Deste modo Cristiana, seus filhos e Misericórdia principiaram seu caminho de peregrinação, recebidos pelo Senhor, quem lhes falou com benignidade.
—Nos arrependemos —agregaram— dos nossos pecados, e pedimos ao nosso Senhor que nos outorgue o perdão, informando-nos mais particularmente do que nos convém fazer.
—Concedo o perdão —respondeu—, de palavra e de fato: de palavra, na promessa da remissão dos pecados; de fato, na forma em que eu o consegui para vós. Recebam agora dos meus lábios um beijo, e o resto vos será revelado.


[1] Provérbios 126:5-6.
[2] Jonas 2:7

FONTE:  Livro a Peregrina de John Bunyan

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Redes sociais