quinta-feira, 30 de junho de 2011

História do Apóstolo Judas Tadeu (doze Homens e uma missão)



Judas Tadeu
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"Disse-lhe Judas, não o Iscariotes: Donde procede, Se­nhor, que estás para manifes­tar-te a nós, e não ao mundo?"
João 14.22

A tentativa de se desvendar a obscura origem do apóstolo Judas Tadeu tem levado muitos estudiosos do tema a depararem com uma das mais antigas controvérsias bíblicas jamais levantadas: a questão dos irmãos do Senhor.
Apesar de algumas passagens neotestamentárias desacreditarem clara­mente a presença de um dos irmãos de Jesus entre os doze, essa crença, todavia, não emergiu de discussões teológicas recentes, mas remonta aos primeiros séculos da Igreja.
Em Mt 13.55 encontramos o nome de Judas entre os que compunham o rol dos irmãos de Jesus segundo a carne, muito embora o conceito hieronímico da tradição romanista, tenha procurado implantar a idéia - lançada no quin­to século por Jerônimo de Belém - de que tais homens eram, na realidade, "primos" do Senhor. Tal conceito, embora muito antigo, fere frontalmente o próprio significado do termo grego adelphos, que no Novo Testamento in­variavelmente se aplica a irmão quando se refere a uma relação de parentesco. Ademais, as Escrituras não deixam margem para dúvidas, ao afirmarem que Jesus, embora sendo o Unigênito (grego monogenes) Filho de Deus (Jo 1.14, 3.16; ljo 4.9) era, na verdade, o primogênito (gr. prototokos) de Maria (Lc 2.7). As afirmações contrárias, via de regra, defendem uma visão distorcida acerca da santidade no casamento ou ainda uma extravagante apologia ao celibato, fruto da forte influência que as tendências ascéticas exerceram na Igreja a partir do século IV.
Existe, por outro lado, um abismo entre se reconhecer, como biblicamente procedente, a irmandade de Jesus com o Judas de Mt 13.55 e a identificação deste com um dos doze discípulos, como pretendem alguns. Isso porque as Escrituras, como no caso de Jo 7.5, são por demais incisivas ao relatarem a postura dos irmãos de Jesus quanto ao seu messianismo.

"Pois nem mesmo os seus irmãos criam nele."

Com efeito, a conexão que se têm feito desse mesmo Judas com o autor da breve epístola universal que leva seu nome parece mais provável. Isso porque o irmão do Senhor (ou meio-irmão, como preferem alguns), a exem­plo de Tiago, teria posteriormente se convertido, tornando-se um apóstolo do evangelho. Deixaremos, porém, esse assunto para ser tratado mais adiante, quando discuti­remos a biografia do apóstolo Tiago Maior.
Se o personagem de Mt 13.55 não era um dos doze, quem era Judas Tadeu? A tentativa de rastrear as origens desse apóstolo captou a atenção de alguns dos chamados Pais Apostó­licos. Jerônimo, um dos mais destacados pen­sadores cristãos do século V, chama-o de Trionius, isto é, "o que possui três nomes". De fato, o apóstolo é apresentado, dependendo da tradução, com dois outros nomes: Tadeu e Lebeu (Mt 10.3; Mc 3.18; Lc 6.16; Jo 14.22; At 1.13). Alguns tem sugerido que o nome Tadeu seja o diminutivo de Teudas, derivado do aramaico tad, que significa "peito" ou "co­ração". Isso poderia dar ao nome uma conotação de alguém "querido" ou "amado". Essa suposição é confirmada pela origem do nome Lebeu que, por sua vez, deriva do subs­tantivo hebraico leb, ou seja, "coração".
Em sua exaustiva pesquisa biográfica sobre os discípulos do Senhor, o Dr. Steuart McBirnie reconhece a complexidade da origem do após­tolo em questão (op. cit., p. 195).

"A correta identificação deste Judas é extremamente complicada, não ape­nas em função dos três nomes com os quais os registros bíblicos o apresen­tam, mas também pela enigmática referência a ele dirigida como 'filho de Tiago'. Com efeito, poderíamos saber muito mais acerca dele se soubésse­mos exatamente quem foi esse Tiago a quem se referem as Escrituras."

Nas traduções católico-romanas encontramos, em Lc 6.16 e At 1.13, Judas Tadeu como "irmão de Tiago". A maior parte das versões bíblicas, entretanto, se refere ao apóstolo como "filho" deste mesmo Tiago, sobre quem nada sabe­mos. O grego original, nesse caso, meramente diz "Judas de Tiago". No entan­to, esta expressão sugere uma alusão muito mais ligada à paternidade do que a irmandade, conforme atestam os estudiosos do assunto. Ora, se Judas era, como imaginamos, "filho de Tiago" , quem era afinal esse Tiago?
Muitas associações foram propostas, ao longo dos séculos, tentando iden­tificar a origem desse obscuro personagem, suposto pai de Judas Tadeu. Uma delas diz se tratar de Tiago, irmão de Jesus, celebrizado pela tradição como Tiago, o Justo. Esse Tiago tornou-se um dos anciões da Igreja de Jerusalém e autor da epístola universal que leva seu nome. A impropriedade dessa alter­nativa repousa, basicamente, sobre duas constatações: primeiramente, por­que sendo Jesus o primogênito de Maria, segue-se que Tiago foi um de seus irmãos mais novos; portanto, ainda que tivesse contraído matrimônio em tenra idade, dificilmente poderia ser pai de alguém maduro o suficiente para tomar sobre si a responsabilidade do discipulado cristão. Em segundo lugar, porque a tradição primitiva freqüentemente apresenta Tiago como um ho­mem assaz rigoroso em sua consagração ao Senhor; esse rigor teria se traduzi­do numa vida ascética e, portanto, celibatária.
Resta-nos, pois, considerar a possibilidade de Judas descender de um dos dois Tiagos, discípulos de Jesus. Neste caso, alguns autores têm sido tentados a sugerir o nome do mais velho dentre ambos, ou seja, o de Tiago Maior. McBirnie, comenta (op. cit., p.205).

"Ainda sujeito a correções devido a eventuais descobertas futuras, o seguin­te esboço biográfico foi deduzido de tradições e descobertas já acessíveis:
Judas era filho de Tiago Maior e neto de Zebedeu. Descendia da tribo de Judá, como se pressupõe, de alguém cujo nome representa a forma grega dessa nação israelita. Seguiu, provavelmente, os passos de seu pai até o círculo dos Doze, desde as adjacências de Cafarnaum, onde ambos, em tempos anteriores, trabalharam como pescadores. Judas deve ter tido uma grande proximidade com os Setenta, que também eram discípulos de Jesus, até mais tarde 'posicionar-se firmemente como um dos Doze'."

Se confirmada, essa filiação atribuída a Judas provavelmente faria dele o mais jovem dos doze discípulos.
Qualquer que seja a nossa perspectiva diante de conjecturas como as de McBirnie, o certo é que decifrar a origem de apóstolos como Judas Tadeu tornou-se um verdadeiro desafio à pesquisa histórico-eclesiástica.
O autor britânico John D. Jones, deixando de lado as especulações da tradição cristã, reconhece a grande lacuna deixada pela narrativa bíblica particularmente com respeito aos apóstolos Judas Tadeu e Tiago Menor (The Kpostles of Jesus, p. 119).

"Assim, o que sabemos acerca deles? Absolutamente nada senão seus nomes e o fato de Judas, no cenáculo, ter dirigido a Jesus a questão: 'Donde procede, Senhor, que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?'
Esses dois apóstolos se apresentam para nós, atualmente, como meros nomes. Seu caráter, suas façanhas e seu histórico pessoal nos são total­mente desconhecidos.
Conquanto seus nomes tenham chegado até nós gravados pelas páginas da história cristã, parecem inevitavelmente naufragados na obscuridade, semelhantemente à vasta maioria dos que jazem em nossos cemitérios, dos quais só temos os nomes preservados em granito e mármore.
Pode-se dizer, portanto, que a marca característica de Judas e Tiago [Me­nor] é a sua própria obscuridade. Sabemos um pouco acerca de cada um dos demais apóstolos, mas quanto a esses, literalmente nada. Tudo que podemos afirmar com respeito a eles é o fato de serem homens irreme­diavelmente desconhecidos."

O comentário de Jones é suscetível a algumas críticas, tanto sob a ótica bíblica como histórica. Biblicamente, porque não devemos ignorar a possi­bilidade de Judas ter sido realmente filho do apóstolo Tiago Maior, como sugere McBirnie. Dentre todas as hipóteses que o conectam a algum outro Tiago citado no universo neotestamentário esta é a mais plausível. A partir dela, poderíamos afirmar, por exemplo, que Judas era neto de Zebedeu, um próspero pescador da Galiléia (Mt 4.21; Mc 1.19-20) e de Salomé, uma das várias mulheres piedosas que seguiam a Jesus (Mt 27.56; Mc 15-40). Como Zebedeu e seus filhos pescavam em Betsaida e em suas adjacências, teríamos, assim, esta região galiléia como a provável localidade da origem de Judas. João, o irmão mais jovem de Tiago, um dos mais destacados apósto­los da Igreja primitiva, seria, portanto, seu tio. Isso representaria uma ligação íntima entre Judas Tadeu e dois dos três mais próximos discípulos do Se­nhor, o que teria potencialmente produzido significativa influência em seu ministério posterior. Historicamente porque, ao contrário do incontestável silêncio bíblico sobre ele, as narrativas da história eclesiástica, embora num volume pouco expressivo, não deixaram sem registro parte de seu trabalho apostólico, tradicionalmente estendido por algumas regiões do mundo anti­go, como veremos a seguir.

A conexão com a Igreja Armênia
Como mencionamos anteriormente, ao discorrer sobre a biografia de Bartolomeu, a região da Armênia foi alvo de algumas investidas missionárias que remontam ao primeiro século da Igreja. Dentre as várias campanhas que transformaram aquela nação num dos principais centros cristãos da Antigüi­dade, encontram-se as protagonizadas pelo apóstolo Judas Tadeu, como lembra McBirnie (op. cit., p.199).

"A associação da Igreja da Armênia com o rol dos apóstolos é uma das mais fundamentadas narrativas de toda a tradição histórica pós-bíblica. São Judas é consistentemente citado como um dos cinco apóstolos que visita­ram e evangelizaram a região. Com a proclamação oficial feita em 301 A.D., a Armênia tornou-se a primeira nação cristã em todo o mundo. O então rei Tiridates, ao lado de toda a nobreza do país, foi batizado por São Gregório, o lluminador."

Em seu livro Jerusalém and the Armenians (p.20), Assadour Antreassian reconhece a influente presença das missões cristãs nos tempos mais remo­tos de sua nação, ao lembrar a obra dos apóstolos Judas Tadeu e Bartolomeu.

"Assim, as igrejas cristãs concordam com a tradição ao afirmarem que o cristianismo foi levado à Armênia pelos apóstolos Tadeu e Bartolomeu, na primeira metade do século I, quando se encontravam em pleno cumpri­mento da vocação para anunciar o Evangelho tanto em Jerusalém, como na Judéia e em Samaria e até os confins da Terra (At 1.8). A Armênia colocou-se, pois, entre os primeiros países a responder positivamente ao chamado de Cristo. Destarte, os apóstolos acima mencionados se torna­ram os primeiros iluminadores daquela nação. Uma cronologia popular-mente aceita registra um período missionário de oito anos para São Tadeu (35-43 A.D.) e dezesseis anos para Bartolomeu (44-60 A.D.). Ambos so­freram martírio naquelas terras, sendo Tadeu em Ardaze, em 50 A.D. e Bartolomeu em Derbend, em 68 A.D."

Embora não concorde cronologicamente com a narrativa de Antreassian, Aziz Atiya, em seu livro History of Eastern Christianity (p.315-316), ao analisar as origens e o desenvolvimento da Igreja armênia, considera provável a precoce evangelização daquela região, protagonizada por alguns dos doze, em especial pelo apóstolo Judas Tadeu:

"É concebível que a Armênia, por sua proximidade à Palestina, fonte de onde jorrou a fé em Jesus, tenha sido, ainda cedo, visitada por propagadores do cristianismo, embora nos seja difícil conceber a extensão em que a nova religião penetrou entre os habitantes daquele país.
(...)
Uma tradição corrente entre os armênios atribui a primeira evangelização da nação ao apóstolo Judas Tadeu que, segundo sua cronologia, passou os anos 43-66 A.D. naquele lugar. O apóstolo teria sido ajudado por Bartolomeu a partir de 60 A.D. Este último, por sua vez, foi martirizado em Derbend, em 68 A.D.
Portanto, de acordo com a tradição local, Tadeu tornou-se o primeiro Patri­arca da Igreja da Armênia, munido tanto de atribuições apostólicas como autocéfalas. Outra tradição atribui à sé de Ardaze uma linha de bispos de nomes conhecidos, cujos períodos episcopais remontam ao segundo sé­culo. Os anais do martirológio armênio registram legiões de mortos duran­te o período apostólico. Um rol de milhares de vítimas, homens e mulheres de nobre descendência, perderam suas vidas ao lado de São Tadeu, en­quanto outros tantos pereceram junto a Bartolomeu.
(...)
Embora seja difícil confirmar ou refutar a historicidade de tais lendas - tão preciosas ao coração dos armênios - pode-se deduzir que houve cristãos na Armênia antes do advento de São Gregório, o Iluminador, o apóstolo cristão à Armênia, durante o quarto século."

O célebre Eusébio de Cesaréia (260-340 A.D.) em sua obra História Eclesiástica cita, por duas vezes, acontecimentos marcantes ligados à Igreja da Armênia, os quais sugerem uma boa difusão da fé cristã por aquelas terras nos primeiros dois séculos de nossa Era. Primeiramente, o historia­dor menciona o fato de Dionísio de Alexandria, pupilo do grande Orígenes, ter escrito uma epístola aos cristãos armênios, denominada "Sobre o Arre­pendimento". Noutro instante, Eusébio lembra a perseguição do Impera­dor Maximiniano (311-13 A.D.) contra os armênios os quais - embora velhos aliados de Roma - com a forte adesão que demonstraram ao cristia­nismo, tornaram-se inimigos potenciais do Império que, em sua parte orien­tal, empregava esforços imedidos na extinção do cristianismo. Conquanto esse fato aluda ao princípio do quarto século, época das notórias missões de Gregório, o Iluminador, parece claro que muito antes disso a fé cristã já havia se abrigado no coração de parte do povo armênio. Acerca dessa quêstão, a obra The Armenian Patriarchate of Jerusalém, elaborada por cristãos armênios residentes em Jerusalém, cita com orgulho indisfarçado a antiga ligação de sua pátria com a Terra Santa (p. 3).

"A precoce conexão [dos armênios] com Jerusalém se deve, naturalmen­te, à antiqüíssima conversão da Armênia. Mesmo antes do descobrimento dos lugares sagrados, os armênios, assim como os cristãos de países vizi­nhos, se dirigiam à Terra Santa, através das estradas romanas, com o pro­pósito de venerar os lugares os quais Deus santificou. Lá, muitos viviam e adoravam no Monte das Oliveiras. Após a Declaração de Constantino, conhecida como Édito de Milão e a conseqüente descoberta dos lugares sagrados, peregrinos armênios derramaram-se sobre a Palestina, num flu­xo constante através dos anos. O número, assim como a importância dos monastérios armênios começou a aumentar ano após ano."

A alegada presença de Tadeu na Armênia e na Mesopotâmia setentrional é particularmente reforçada pela abundante tradição cristã a esse respeito, maiormente originária da antiga cidade de Edessa (atual Urfa, no leste da Turquia), outro provável palco de suas atuações como apóstolo.
Na passagem do segundo para o terceiro século, o então imperador ro­mano Caracala (188-217 A.D.), sonhando tornar-se um novo Alexandre Magno, arremeteu suas tropas contra os impérios orientais, conquistando muitas cidades; Edessa contou-se entre elas. A partir de então, sua progres­siva ligação com o ocidente, através da cultura romana imposta pelos con­quistadores contribuiu para a aceleração de seu processo de cristianização.
Embora não se possa provar o pioneirismo de Judas Tadeu na evangelização de Edessa, há suspeitas de que esta cidade mesopotâmica recebeu o evangelho ainda no período apostólico. A absorção da nova doutrina na cidade foi tal que, duzentos anos mais tarde, já se transformara num dos mais relevantes centros de teologia cristã de todo o mundo antigo. Com efeito, a escola teoló­gica de Edessa, em seu apogeu, despontou como a grande rival das academias de Alexandria e Antioquia, as mais conceituadas da época. A versão siríaca do Velho Testamento (conhecida como Peschito) foi sua primeira obra de grande notoriedade e o escritor cristão Bardesano, um de seus maiores representantes, embora posteriormente vitimado pela sedução gnóstica.
As perseguições dos imperadores Décio e Diocleciano, alastradas por grande parte do mundo romano de então, interromperam a prosperidade de Edessa, só resgatada após a direção de Efrem, em 320 A.D., quando se iniciou seu período mais glorioso. Mais tarde, durante as Cruzadas, Edessa tornou-se uma das poderosas fortificações cristãs do oriente, até capitular sob mãos turcas em 1144A.D.
O manuscrito siríaco O Ensino dos Apóstolos — produzido no tempo em que Edessa emergia em todo seu potencial teológico - atribui a evangelização da cidade a um certo apóstolo Adeu. Laborioso em suas missões, Adeu teria ainda enviado um de seus discípulos, Ageu, para evangelizar as regiões interi­ores da Pérsia, Assíria, Média e Armênia. O nome de Adeu, citado no ma­nuscrito como um dos setenta apóstolos, para alguns autores, nada mais é do que uma mera corruptela do nome de Judas Tadeu.

"Edessa e todos os termos ao redor dela, assim como Zoba, Arábia e as regiões norte, sul e fronteiriças da Mesopotâmia, receberam a ordenação sacerdotal da parte de Adeu, um dos setenta e dois apóstolos, o qual fez discípulos e construiu ali uma Igreja (...)."

As lendas que tentam precisar o "ponto zero" da evangelização de Edessa e que envolvem, além de Tadeu, outros nomes apostólicos como os de Bartolomeu e Tomé, produziram narrativas, no mínimo, muito interessan­tes. Os manuscritos síríacos que constituem as Memoirs of Edessa {Memóri­as de Edessa), traduzidos para o inglês pelo reverendo B. P. Pratten, registram que Tadeu foi enviado à Mesopotâmia pelo apóstolo Tomé, em cumpri­mento a uma promessa feita de punho pelo próprio Senhor Jesus a Abgar, rei de Edessa. Vejamos os trechos mais curiosos desse relato.

"Após a ascensão de Jesus, Judas Tomé enviou-lhe [a Abgar] o apóstolo Tadeu, um dos setenta. Ao chegar, Tadeu permaneceu em companhia de um certo Tobias, filho de Tobias. Quando as novas acerca de sua chegada se fizeram ouvir, foi dito a Abgar: 'Eis que o apóstolo de Jesus é chegado, tal como Ele to escreveu.'
Tadeu, por sua vez, começou a curar as enfermidades e doenças pelo poder de Deus, de tal sorte que todos ficaram maravilhados. Quando Abgar soube das grandes e maravilhosas curas que Tadeu operava, consi­derou que se tratava daquele sobre quem Jesus escreveu, dizendo: 'Quan­do for levado para o alto, enviar-te-ei um de meus discípulos, para que ele te cure da tua enfermidade'.
Abgar, então, mandou chamar Tobias, com quem Tadeu estava e disse-lhe: 'Tenho ouvido que um homem poderoso chegou e estabeleceu-se contigo em tua casa. Traga-o, pois, a mim'.
Acercando-se de Tadeu, Tobias disse-lhe: 'Abgar, o rei, mandou chamar-me e ordenou-me que te levasse até ele. Tadeu replicou-lhe: 'Certa­mente irei, pois a ele tenho sido enviado com poder.' Tobias levantou-se cedo, no dia seguinte, e tomando consigo a Tadeu, levou-o até a presen­ça de Abgar.
Ao chegarem, eis que ali estavam também alguns dos príncipes locais. Imediatamente ao ver entrar Tadeu, Abgar teve uma visão sobre o sem­blante do apóstolo. Assim, quando Abgar o contemplou, prostrou-se aos seus pés e grande espanto apoderou-se dos que estavam presentes, pois não tinham tido a visão, que aparecera a Abgar. O rei procedeu perguntando a Tadeu: 'Es tu o discípulo de Jesus, o Filho de Deus, o qual me disse: 'eu te enviarei um de meus discípulos para que te cure e te dê salvação'? Tadeu, então, lhe respondeu: 'Visto que tens poderosa­mente crido naquele que me enviou, eis que sou enviado a ti. De novo te digo, se creres nEle, obterás os desejos de teu coração.'"

Diante da confissão, diz o relato que Tadeu imediatamente impôs as mãos sobre Abgar, curando-o da enfermidade que por muito tempo o acometia.

"E Abgar maravilhou-se, porquanto viu através dos feitos do discípulo Ta­deu as mesmas coisas que ouvira falar com respeito a Jesus. Pelo que, sem medicamentos ou raízes foi curado e não apenas ele, mas também Abdu, filho de Abdu, que sofria de gota. Abdu também havia entrado ali e lançado-se aos pés do apóstolo que, ao orar sobre ele, curou-o de sua enfermidade. Muitas outras pessoas da cidade foram sanadas por Tadeu, muitos sinais foram por ele realizados e a Palavra de Deus foi ali pregada."

A lenda se encerra com os rogos de Abgar ao apóstolo por uma explana­ção minuciosa sobre os feitos de Jesus, o que Tadeu consente em fazer, porém para um público mais abrangente e não apenas para o soberano. Notória é também a recusa do apóstolo em aceitar a recompensa do rei pelas bênçãos que ministrara.

"Depois dessas coisas, Abgar disse-lhe: 'Tu, Tadeu, verdadeiramente operas, pelo poder de Deus, essas coisas das quais nos maravilhamos. Contudo, além do que já fizeste, conjuro-te que me relates a história sobre a vinda de Cristo e a maneira como ela se sucedeu. Conta-me também acerca do poder medi­ante o qual operou todas as coisas que dEle tenho ouvido falar.'
Tadeu, então, respondeu-lhe: 'No momento, apenas guardarei silêncio. Contudo, por ter eu sido enviado para pregar a Palavra de Deus, reúne amanhã - peço-te - todas as pessoas da cidade e então anunciarei e semearei entre elas a palavra da vida, contando-lhes acerca da vinda de Cristo e do modo como se sucedeu. Revelar-lhes-ei também Sua missão e o propósito com o qual foi enviado pelo Pai; contar-lhes-ei acerca de Seu poder, de Seus feitos e dos mistérios sobre os quais falou enquanto estava no mundo (...)'
Abgar, então, ordenou que naquela manhã toda a população de sua cida­de fosse congregada a fim de ouvir a anunciação de Tadeu. Mais tarde, ordenou que ouro e prata lhe fossem presenteados, porém Tadeu não os recebeu, dizendo-lhe: 'Se deixamos para trás tudo aquilo que era nosso, por que razão aceitaríamos aquilo que a nós não pertence?'"

Em outro documento siríaco denominado O Ensino deAdeu, o Apóstolo, encontramos enfatizada a resposta positiva do povo de Edessa à proclamação do evangelho, bem como o impacto dessa receptividade sobre o rei Abgar.

"E Adeu, o apóstolo, regozijou-se ao ver que grande número da popula­ção da cidade permaneceu com ele. Não foram senão uns poucos que, naquele momento, se recusaram a crer. Mesmo esses tais, após alguns dias, aceitaram suas palavras e creram no evangelho de Cristo.
Quando, pois, o apóstolo Adeu falou essas coisas, toda a população de Edessa - tanto homens como mulheres - regozijou-se de seu ensino di­zendo: 'verdadeiro e fiel é Cristo que a nós to enviou'.
Vendo o rei Abgar que toda a cidade se alegrara, também ele alegrou-se sobremodo com isso dando graças a Deus, visto que tal como ouvira falar sobre Cristo de Hanan, seu secretário, assim tinha testificado pelos mara­vilhosos sinais que o apóstolo Adeu realizara em seu Nome."

Outras possíveis missões de Tadeu pelo mundo antigo
As narrativas que ligam o apóstolo Judas Tadeu à evangelização da Armênia são, sem dúvida, mais consistentes que as tradições sobre seu apostolado em outras terras. Embora a Armênia possa ter concentrado os frutos mais significativos de sua evangelização, é certo que Tadeu não limi­tou seus esforços missionários àquela nação oriental. Isto porque, a própria jornada até lá, por si mesma, já incluiria necessariamente a passagem por diversas regiões, todas igualmente carentes da mensagem salvífica da qual Judas era portador.
Conforme visto anteriormente, o antigo escrito O Ensino dos Apóstolos (Didascalia Apostolorum) apresenta algumas regiões onde se crê que Tadeu tenha exercido alguma influência pastoral.
A Síria e a antiga Pérsia também estão entre as possíveis rotas missionárias do apóstolo. As lendas sobre a presença de Tadeu na Pérsia - atual Irã - é reforçada por sua proximidade territorial com a Armênia que, como vimos, concentra os mais significativos relatos de suas missões pós-bíblicas. Ademais, a própria Armênia fora, por muito tempo, parte do antigo império persa até a derrota deste, no séc. IVa.C, pelas forças macedônias de Alexandre Magno.
A tradição cristã persa apresenta-o como um laborioso missionário a cujo trabalho associou-se posteriormente o apóstolo Simão Zelote que, segundo alguns autores, esteve pregando na conturbada Britânia antes de dirigir-se ao oriente. Diz-se que ambos sofreram o martírio juntos naquelas terras, em fiel testemunho ao evangelho que pregaram.
O relato do Ensino dos Apóstolos e de alguns documentos apócrifos en­contram eco na História Eclesiástica do patriarca Nicéforo Calixto (séc. IX), onde vemos confirmadas as ações evangelísticas de Judas Tadeu na Fenícia, Síria, Arábia, Assíria e a Mesopotâmia.

A morte de Judas Tadeu
A arte sacra medieval, ao focalizar o momento de seu martírio, deixou para a posteridade o retrato de um Tadeu relativamente jovem. Isso, de certa manei­ra, reforça a suspeita de sua precocídade como discípulo de Cristo. Por outro lado, as antigas lendas sobre seu suplício estão distantes de qualquer homogeneidade. Nelas, o apóstolo foi ora vitimado por um ataque de javalis, ora perfurado por lança ou até mesmo crucificado, como ocorre com a maior parte dos relatos da morte dos apóstolos. É importante que se diga, porém, que a morte por crucificação era típica dos romanos, que a empregavam abun­dantemente nos limites de seu império. A Armênia - embora tributária de Roma a partir de 66 a.C. — não fazia parte dele, portanto tal descrição soa incoerente se o suplício do apóstolo verdadeiramente se deu naquelas terras.
Enquanto para algumas narrativas os feitos mais expressivos de Tadeu na Armênia estão associados ao rei Abgar, sua posterior execução está ligada ao filho e sucessor deste, Severus, como vemos, por exemplo, nos fragmentos de textos siríacos conhecidos por Extracts from Various Books Concerning Abgar the King and Addaeus the Apostle (Extratos dos Vários Livros Relativos ao Rei Abgar e Adeu, o Apóstolo):

"(T) Adeu pregou em Edessa e na Mesopotâmia nos dias do rei Abgar. Estando ele entre os zofenianos, Severus, filho de Abgar mandou buscá-lo e feriu-o, assim como a um jovem discípulo seu, em Agel Hasna."

Nicéforo discorda da maioria das lendas armênias e persas e indica a Síria como palco do fim de Judas Tadeu. A tradição que relata o suplício de Tadeu nas cercanias de Beirute, no Líbano (então parte da Fenícia, e esta da Síria), foi investigada in loco pelo Dr. McBirnie em sua viagem à cidade em 1971. Infeliz­mente, McBirnie não constatou qualquer informação digna de registro acerca da lenda, tanto da parte de católicos como de ortodoxos libaneses. O mesmo resultado repetiu-se em sua viagem ao Egito, onde também peregrinou bus­cando evidências de algumas lendas alusivas ao martírio de Tadeu naquele país.
Não obstante as frustrações iniciais, em outubro do mesmo ano, o pes­quisador estendeu sua viagem até Teerã, no Irã, onde por fim coletou infor­mações decisivas para a localização do túmulo do apóstolo (op. cit., p. 203).

"Os líderes da Igreja Assíria, assim como um certo general do exército iraniano, informaram ao autor, em viagem a Teerã (em 16 de outubro de 1971) que a tumba original de São Tadeu encontra-se na pequena locali­dade de Kara Kalesia, próxima ao Mar Cáspio, cerca de quarenta milhas de Tabriz, em território iraniano próximo à fronteira soviética. Esse pode ser o sítio original da tumba de São Judas, conquanto seja provável que, a fim de manter as relíquias a salvo das invasões de Genghis Khan, as mes­mas tenham sido trazidas ao ocidente sendo, então, espalhadas desde Roma até a Espanha."

A cidade de Ardaze, no sudeste da Armênia, é uma das candidatas ao real lugar de descanso de Tadeu. A preservação, pelos ortodoxos armênios, da tumba ali existente simboliza seu esforço em manter vivos os resquícios da origem apostólica de sua Igreja.
Contrapondo-se ao clamor dos ortodoxos, a Igreja romana sustenta que as verdadeiras relíquias do apóstolo encontram-se na Basílica de São Pedro e São Paulo, no Vaticano, misturadas às do condiscípulo Simão Zelote, ao lado de quem — sustentam os persas — o apóstolo evangelizou o oriente.
E verdade que o contexto bíblico não nos permite uma conclusão muito consistente sobre a biografia de Judas Tadeu. Entretanto, a história primiti­va do cristianismo preencheu algumas lacunas sobre seu perfil ministerial, ao retratá-lo como alguém inteiramente comprometido com as missões transculturais. A possibilidade de seu martírio em terras estrangeiras, refle­te a dimensão de seu engajamento e de sua fidelidade ao comissionamento de seu Mestre.
Segundo o Evangelho de João, na noite da traição, Judas Tadeu foi o último dos discípulos a dirigir ao Mestre questões acerca do porvir. Em res­posta à dúvida do discípulo, Jesus imprimiu em seu coração algo que nortearia seu futuro trabalho missionário (Jo 14.23):

"Se alguém me ama, guardará minha palavra; e meu Pai o amará, e vire­mos para ele e faremos nele morada."

Para Judas e seus companheiros, esse status de morada divina se manifes­tou de forma sensível no Pentecostes. Então, cheio do Espírito Santo e ar­dendo em amor pelas almas perdidas, o apóstolo lançou-se resoluto às missões estrangeiras, desprezando os perigos e as hostilidades típicas das lugares estranhos por onde peregrinou. Semelhante projeto de vida custar-lhe-ia, contu­do, não apenas a renúncia de boa parte de suas realizações seculares, mas por fim seu próprio sangue, derramado num martírio que selaria sua fidelidade Àquele que o arregimentou para a nobre peleja (2 Tm 2.3-4).
E verdade que as lendas sobre suas missões — mesmo aquelas ligadas à Armênia e à Pérsia — são pouco numerosas. Entretanto, são suficientes para retratá-lo como um dos apóstolos pioneiros a deixar a Judéia em direção às nações pagas. Tadeu pode também ter sido um dos primeiros missionários a testemunhar vitoriosamente a um soberano gentio, como vimos nas len­das sobre Abgar, rei de Edessa.
O silêncio das Escrituras e a pouca atenção da história eclesiástica sobre o apóstolo levaram John D. Jones a registrar uma interessante apologia ao qua­se desconhecido ministério de Judas Tadeu {op. cit., p.120).

"É exatamente isso que constitui a verdadeira grandeza de Judas: dar o melhor de si, mesmo que despercebido dos homens. Judas foi fiel, mes­mo nos lugares mais humildes. É relativamente fácil dar o melhor de si quando se é uma figura conspícua. O simples fato de as pessoas nos observarem os esforços e comentarem sobre nosso trabalho é, em si mesmo, um incentivo e um encorajamento. Desalentador é, no entanto, dar o melhor de si quando ninguém faz de nós objeto de sua observação, atenção ou louvor. Esse procedimento é da fidelidade o maior triunfo e a maior proeza.(...)
Ó, que Deus nos dê do espírito de Judas Tadeu. Não alcançaremos gran­de fama, tampouco nossos nomes figurarão na história. A despeito de tudo isso, teremos feito nosso melhor. Sim, quer os homens nos louvem ou nos ignorem, pecamos a graça de humildemente empreendermos o melhor de nós mesmos, para que sobre nossos ouvidos recaiam o doce reconhecimento: 'Muito bem, servo bom e fiel; foste fiel no pouco, sobre muito te colocarei: entra no gozo do teu senhor'."
FONTE: Doze homens e uma missão / Aramis C. DeBarros. - Curitiba : Editora Luz e Vida, 1999.

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