quarta-feira, 29 de junho de 2011

Uma introdução ao mundo apostólico (Doze homens e uma missão)

Imagem cedidas por: http://nildomello.blogspot.com/2011/05/os-apostolos.html


"...e sereis minhas testemu­nhas tanto em Jerusalém, como em toda a Judéia e Samaria, e até os confins da terra."
Atos 1.8

Para melhor compreendermos o ministério apostólico dos doze dis­cípulos de Jesus, é interessante que, antes, gastemos algum tempo analisando as condições culturais, políticas e religiosas vigentes no período do primeiro século da era cristã, cenário onde se desenrolaram as atividades missionárias dos apóstolos, cujas vidas serão objeto de nossa investigação.
Uma vez incumbidos de anunciar a boa nova do Evangelho a toda a criatura (Mt 28; 19; At 1:8), os apóstolos passaram por um processo gradativo e, por vezes, penoso de ruptura com o típico sectarismo judaico, que lhes imprime um forte sentimento de exclusividade em relação ao Todo-Poderoso. A desafiadora perspectiva de evangelizar os gentios impulsionou suas numerosas campanhas missionárias, orientadas para um mundo que, em­bora ostentasse uma atmosfera relativamente pacífica, apresentava muitas situações de conflitos sociais localizados, típicas de uma sociedade que ex­perimentava o impacto de profundas transformações culturais, como aque­las vividas no primeiro século. Essa conjuntura social ofereceu às missões apostólicas horizontes tão atraentes quanto perigosos, como veremos detalhadamente mais adiante.
As primeiras experiências de oposição enfrentadas pelos doze, no exercí­cio da propagação de sua fé, não vieram do estrangeiro, mas de seu próprio ambiente, da sua própria casa: a Palestina. Ali, a tenaz resistência das insti­tuições judaicas sedimentou, aos poucos, a realidade de que aqueles para os quais o Messias viera não o receberiam (Mt 20.16, Jo 1.11).
Embora a palavra tenha encontrado solo fértil em muitos corações em Isra­el, tornava-se cada vez mais clara a direção divina que os impelia ao encontro dos gentios e judeus de além fronteira, para um ministério em que o limite seria o próprio mundo então conhecido. Entretanto, o livro de Atos nos permi­te constatar que as perseguições levantadas contra o evangelho nas cercanias de Jerusalém, por mais severas que se tenham demonstrado, não foram suficien­tes para consolidar nos apóstolos, num primeiro momento, a noção da mu­dança na rota missionária que, em poucos anos, passaria a ser caracterizada principalmente por aspectos transculturais (At 8.1,4).

"Naquele dia levantou-se grande perseguição contra a Igreja em Jerusa­lém, e todos, exceto os apóstolos, foram dispersos pelas regiões da Judéia e Samaria. (...)

Entrementes os que foram dispersos iam por toda a parte pregando a palavra."

A despeito de toda essa relutância, o caráter universal do evangelho não esteve oculto dos apóstolos nem mesmo no momento do desabrochar da Igre­ja, no Pentecostes. Essa experiência, magnífica em toda sua transcendência, ganhara um caráter universal pela presença e pelo testemunho de judeus e prosélitos procedentes de diversas nações do mundo antigo, milhares dos quais creram e foram batizados naquele mesmo dia (At 2.41).
Mais adiante, missionários como Paulo, Silas, Barnabé e Timóteo, embora não pertencendo ao seleto rol dos doze apóstolos, influenciariam definitiva­mente a mudança de curso na ministração apostólica, em função de seu grande êxito na evangelização das populações greco-romanas. Em sua obra The Search for the Tivelve Apostles (p. 41), o dr. William Steuart McBirnie comenta a repercussão positiva do ministério gentílico de Paulo entre os demais apósto­los, ainda resolutos em dar as costas às missões internacionais.

"E possível que as experiências de Paulo tenham se transformado num desafio direto para muitos cristãos primitivos, e mesmo para alguns dos apóstolos, quanto ao seu alinhamento com a tarefa que desde o princípio lhes pertencia, a saber, abrir o caminho do evangelho para as nações do mundo.(...)
O livro de Atos pode ter sido posteriormente usado como um manual histórico dos métodos evangelísticos triunfantes dos quais Paulo se valeu, assim como uma prova clara de como o Espírito Santo estava inclinado a abençoar - embora não sem tantos obstáculos - a missão aos gentios. Porém, embora não estejamos aqui sugerindo que os apóstolos tenham sido constrangidos a sua tarefa de evangelização mundial pelo Livro de Atos- uma vez que a própria data de sua escrita impediria esta conclusão
- cremos, ainda assim, na possibilidade de que algumas de suas mais antigas porções, assim como as experiências de Paulo nele relatadas, te­nham acabado por surtir esse efeito. (...)
O próprio Paulo, de fato, constatou a relutância dos apóstolos em se diri­girem aos gentios, ao apontar sua estratégia, como vemos.'E, quando conheceram a graça que me foi dada, Tiago, Cefas e João, que eram reputados colunas, me estenderam , a mim e a Barnabé, a destra de comunhão, a fim de que nós fôssemos para os gentios e eles para a circuncisão.'(GI 2.9).
Se o registro das experiências de São Paulo, naquilo que mais tarde veio a se tornar o livro de Atos, teve como um de seus propósitos o encorajar e instruir os apóstolos e outros obreiros cristãos primitivos quanto a sua mis­são aos gentios, isto, de fato, foi o que veio a se suceder. Em algum lugar e nalgum momento, formal ou naturalmente, os apóstolos acabaram por decidir pela estratégia da evangelização mundial, tendo cada qual seguido seu destino estabelecido."

Essa tendência da expansão missionária aos gentios acabou reclamando para si um tratado que lhe oferecesse uma devida apologia. Tal obra, conhe­cida como Os Atos dos Apóstolos, foi preparada com esmero pelo médico, historiador e também evangelista Lucas, e passou para a posteridade não como uma narrativa fragmentada da história eclesiástica do primeiro sécu­lo, mas como um forte argumento de que o próprio Deus, por Seu Espíri­to, impeliu o cristianismo para além dos limites da tradição judaica, tornando-o irreversivelmente universal.
Os estudiosos das biografias apostólicas têm sido incomodados com a ques­tão acerca da permanência dos discípulos em Jerusalém, após a experiência do Pentecostes. Embora as Escrituras, assim como a história, não tenham deixado rastros que nos permitam elucidar essa dúvida, é bem provável que a maior parte deles tenha permanecido ligada ao templo e às demais tradições do juda­ísmo por mais de vinte anos, a despeito da incisiva ordenança do Mestre em ir e ensinar todas as nações. Talvez, a perspectiva do rompimento com o judaísmo tradicional tenha representado para aqueles devotos algo muito mais temeroso do que podemos imaginar, resultando, assim, numa ofuscação da gloriosa tare­fa que os aguardava nas searas estrangeiras.
As circunstâncias políticas, sociais e religiosas que os esperavam nesse campo missionário cosmopolita serão o objeto de nossa análise a seguir. Ela nos ajudará a compreender como esses humildes galileus conseguiram, em me­nos de meio século, ressoar a obra salvífica da Cruz por quase todo o mundo então conhecido.

Os aspectos facilitadores da difusão da fé cristã no mundo greco-romano
Paulo de Tarso, um dos maiores eruditos do cristianismo e autor de gran­de parte do Novo Testamento definiu como a plenitude dos tempos (Gl 4.4) o momento histórico no qual Cristo encarnou e, de maneira transformadora, penetrou a realidade humana. Se o próprio apóstolo não tinha uma noção clara da abrangência dessa afirmação, hoje, contudo, podemos atestar sua procedência histórica. De fato, a conjuntura que caracterizou o primeiro sé­culo foi por demais beneficente para o alastramento da fé cristã, embora pelo menos duas cruéis perseguições do estado contra a Igreja tenham sido verificadas. Contudo, a mesma política romana que, em dados momentos, tão severamente perseguiu, acabou, por outro lado, legando àquela geração cristã uma contribuição sumamente relevante para o sucesso de sua missão evangelizadora. Essa contribuição política, associada à influência cultural gre­ga e à participação religiosa dos judeus da Dispersão (ou Diáspora), transfor­maram o primeiro século num fertilíssimo campo missionário transcultural. McBirnie resumiu assim as circunstâncias que caracterizaram o ambiente sociopolítico do primeiro século (ibidem, p. 31).

"Sinais de algumas rebeliões localizadas ainda se levantavam de tempos em tempos, contudo não pairava qualquer dúvida de que Roma era a sela sobre a qual se assentavam as regiões da Europa, norte da África e Ásia Menor. Augusto e seu sucessor, Tibério, cavalgaram firmemente e por longo tempo sobre essa sela. Qualquer rei que questionasse essa posição, ou qualquer província que ousasse desafiar a César, rapidamente se convencia - não sem sangüinolência - de quem realmente dirigia o mundo.(...)
O prolongamento da Pax Romana trouxe prosperidade, comércio, educa­ção e homogeneidade cultural e lingüística, além de segurança para as viagens, ou seja, uma preparação ideal para a chegada dos apóstolos e missionários cristãos."

Consideremos mais acuradamente as circunstâncias sobre as quais tra­tou McBirnie e de que forma afetaram os missionários cristãos daquele momento, proporcionando-lhes uma conjuntura social propícia para a rá­pido avanço do evangelho.

1. O senso de unidade e universalidade política do império romano.
A disseminação da fé crista teria sido seriamente comprometida no mun­do anterior ao dos césares, onde a divisão política e as constantes guerras entre as cidades-estados e os pequenos reinos, fechados em si mesmos, tor­navam a rápida propagação de idéias uma tarefa quase impossível.
Embora a humanidade já tivesse presenciado, em outras épocas, a ascensão de impérios que, pelo poderio de seus exércitos, estenderam suas fronteiras para muito além de suas origens, nunca antes fora verificada a conquista de tal unidade social sob uma mesma bandeira, como a que se seguiu ao advento de Roma. Nem mesmo Alexandre Magno, com seu vasto império macedônio - cujos limites atingiram as longínquas regiões da índia - conseguiu imprimir nos corações de seus contemporâneos semelhante senso de unidade política.
Roma, com sua ênfase sobre a justiça e a dignidade do cidadão, construiu uma sociedade que reunia diferentes raças e credos sob uma mesma lei e um mesmo soberano. A universalidade resultante desse regime político acabou colaborando para uma atmosfera receptiva ao evangelho, já que a mensagem cristã ressaltava as condições iguais dos homens diante do Criador - como pecadores e, portanto, sob uma mesma lei espiritual. Com o evangelho abria-se também a oportunidade de participação no reino divino, mediante a fé na obra redentora da Cruz, que tornaria os que nela cressem membros indistin­tos do organismo cosmopolita conheci­do como Igreja. Diversas referências neotestamentárias, como a de Paulo em Ef 2.19, ou de Pedro em 1 Pe 2.9a, es­tão impregnadas desse raciocínio:

"Assim já não sois estrangeiros e pere­grinos, mas concidadãos dos santos, e sois da família de Deus."
"Vós, porém, sois raça eleita, sacerdó­cio real, nação santa, povo de propri­edade exclusiva de Deus..."

Do mesmo modo, a idéia de um so­berano absoluto, Concretizada com o poder dos césares, contribui positivamente para uma clara compreensão do Deus anunciado pelos apóstolos, já que o Messias era também apresentado como rei supremo e universal. Este conceito parece ter sido impresso com tal profundidade na mente dos cristãos primitivos que acabou por se ado­tar, com muita freqüência, a expressão Pantocrator (aquele que governa so­bre todo o universo), um dos termos gregos que mais evidenciam a íntima relação da Igreja dos primeiros três séculos com seu Senhor e Salvador.
O exército romano, com suas formidáveis legiões incumbidas da missão de manter viva essa unidade política, também desempenhou um papel rele­vante na difusão do cristianismo, ao arregimentar em suas fileiras habitantes das diversas províncias conquistadas. Muitos deles, ao entrar em contato com a cultura romana, receberam também o evangelho, tornando-se missionários em sua terra natal e nas regiões onde serviam.
Infelizmente, esse mesmo pendor romano para a supremacia mundial sob o estandarte de uma autoridade universal acabou, mais tarde, influen­ciando negativamente os rumos da Igreja, estimulando-a a uma rápida e danosa secularização. Essa influência encontrou na pessoa do perspicaz imperador Constantino (que, no séc. IV, proclamou-se Pontiftcex Maximus da Igreja), o ingrediente necessário para transformar grande parte da Igreja na versão cristã do poderio político imperial. Foi, portanto, dessa semente que germinou a Igreja Católica Apostólica Romana.

2. A relativa segurança e facilidade de trânsito proporcionada por Roma
A enorme extensão territorial do império romano tornou necessário o desenvolvimento e a construção de uma malha viária que permitisse um fluxo comercial e militar compatível às suas riquezas. O cidadão romano do primeiro século habitava regiões sobremodo distantes entre si, como, por exemplo, a Lusitânia (hoje Portugal), a índia ou o Egito. O governo roma­no tratou de tornar, o quanto fosse possível, seguro e confortável o trânsito entre as regiões que compunham o império.
Na verdade, as técnicas romanas de pavimentação já existiam, pelo me­nos, desde o séc. IV a.C, quando da construção da Via Appia - uma obra-prima da engenharia antiga- que ainda hoje é utilizada. O emprego sistemático da mão-de-obra escrava tornou economicamente possível aos romanos a cons­trução de um sistema viário que atingiu, ainda nos tempos apostólicos, a marca extraordinária de cem mil quilômetros de extensão. Para que se tenha uma idéia mais precisa da magnitude desse feito, basta dizer que, até 1980, o Brasil, em sua proporção continental, possuía menos de cento e noventa mil quilômetros de rodovias, entre federais e estaduais — ou seja, menos de o dobro daquilo que os romanos edificaram dois mil anos atrás!
Esse magnífico sistema viário do primeiro século era composto por estradas dispostas de modo estratégico, cruzando vales e montes e atingindo não apenas as regiões mais distantes do Império, como também as fronteiras das nações não dominadas por Roma. Por esses caminhos - tornados relativamente segu­ros pela presença do exército - pisaram, em missão evangelizadora, não apenas os célebres apóstolos, mas muitos cristãos incógnitos os quais, como mercado­res, escravos, soldados ou simples viajantes contribuíram de maneira prepon­derante para a explosão da mensagem cristã no mundo de então.
As rotas marítimas ofereciam, de igual modo, uma perspectiva bastante animadora para aqueles que delas se valiam com intenções missionárias. Com efeito, a paz no Maré Nostrum (hoje Mar Mediterrâneo) havia sido arduamen­te garantida algumas décadas antes do advento de Cristo, com as incursões da frota romana, sob Pompeu, diante de cujo poderio foram varridos os perigo­sos piratas mediterrâneos. Acerca dessa conjuntura, Justo Gonzaléz, em seu livro Uma História Ilustrada do Cristianismo (Vol. I p.24-5), comenta:

"De fato, ao ler acerca das viagens de Paulo vemos que o grande perigo da navegação nessa época era o mau tempo. Uns séculos antes, os piratas que infestavam o Mediterrâneo eram muito mais terríveis do que qual­quer tempestade."

3. A universalidade da língua grega e a expansão do latim
Assim como um indivíduo que domina o inglês comunica-se perfeita­mente por quase todo mundo moderno, na Antigüidade esse mesmo con­forto poderia ser desfrutado por quem pudesse se expressar através do grego popular. Na verdade, a língua grega começara seu processo de popularização já no séc. IV a.O, com a proposta ideológica de Alexandre Magno de ex­portar a cultura grega através das conquistas que formaram o vasto Império Macedônio. Seus incontáveis soldados falavam uma variante do grego clás­sico, conhecida como koinê, que se disseminou por toda a bacia do Mediter­râneo, levada não só por eles, mas também por comerciantes e transeuntes de origem helênica.
Embora aversos a todo tipo de cultura forasteira, considerada uma ame­aça a suas tradições sagradas, os judeus acabaram igualmente influenciados pelo uso da língua grega, uma vez que a Palestina também estivera inserida nos limites do Império Macedônio.
Assim, em Israel, onde o aramaico dissemina-se alguns séculos antes do período apostólico, a popularização do língua helênica veio a tornar-se uma realidade incontestável muito antes do advento da era cristã. Semelhante­mente, os judeus que viviam fora da Terra Santa, chamados de judeus da Dispersão - sobre os quais trataremos mais adiante - já haviam adotado o grego como língua natural, cerca de dois séculos antes de Cristo. No Egito, por exemplo, onde existia uma grande colônia de judeus, de tal modo se perdeu o contato com o idioma hebraico, que se fez necessária uma tradu­ção das Escrituras para o grego, conhecida como Septuaginta ou Versão dos Setenta. Esse trabalho literário cumpriu um papel de suma relevância para o cristianismo apostólico, como lembra Justo González (ibidem, p.21):

"...a importância da Septuaginta foi enorme para a Igreja cristã primitiva. Esta é a Bíblia que a maioria dos autores do Novo Testamento cita, e exerceu uma influência indubitável sobre a formação do vocabulário cris­tão dos primeiros séculos. Ademais, quando aqueles primeiros crentes se derramaram por todo o Império com a mensagem do evangelho, encon­traram na Septuaginta um instrumento útil para sua propaganda. De fato, o uso que os cristãos fizeram da Septuaginta foi tal e tão efetivo que os judeus se viram obrigados a produzir novas versões - como a de Aquila -e a deixar os cristãos na posse da Septuaginta."

Embora militarmente dominados pelos romanos, os gregos deixaram claro, através de expressões culturais como a língua, as artes e o pensamento filosó­fico, que haviam logrado um incontestável triunfo sobre seus conquistado­res no campo intelectual. A influência helênica sofrida pelos romanos foi tal, que contribuiu efetivamente para a transformação da cultura rústica da anti­ga República na riqueza intelectual que caracterizou o Império. Portanto, a expansão do poderio de Roma trouxe consigo uma disseminação ainda mai­or da língua grega, naquilo que se tornaria uma contribuição de inestimável valor para a pregação do evangelho, especialmente no período apostólico e imediatamente pós-apostólico.
Ê aceitável que os apóstolos, de modo geral, falassem grego fluente, em particular, pelo fato de quase todos serem oriundos da Galiléia, região carac­terizada por uma considerável influência cultural helênica, dada sua proximi­dade com a província da Síria, assim como das cidades gregas de Decápolis.
Por outro lado, é importante termos em mente que os romanos também possuíam sua própria língua, o latim, língua esta igualmente difundida em larga escala, especialmente nas partes ocidentais do Império, como por toda a península itálica, as Gálias, a Lusitânia, a Britânia, além da Numídia, na África, onde se encontrava a próspera Cartago. Note-se que a cruz sobre a qual Jesus pendeu ostentava o escrito de sua condenação também em latim (Iesus Nazarenus Rex Iudaerum), como vemos em Jo 19.19-20. A familiari-dade dos apóstolos com esse idioma pode ser verificada pelo emprego de algumas palavras de origem latina nas narrativas neotestamentárias, como, por exemplo, denárw (Mt 18.28; 20.2; 22.19; Mc 6.37; 12.15; Lc 20.24; Jo6.7; 12.5 eAp 6.6) epretório (Mt 27.27; Mc 15.16; Jo 18.28,33; 19.9; At 23.35 eFl 1.13).
Para que missionários como Pedro, João, Filipe, Simão Zelote, Paulo e José de Arimatéia pregassem a Palavra nas regiões ocidentais do Império, como reza a tradição apostólica, era necessário que possuíssem algum co­nhecimento da língua latina.
Assim, pois, o mundo apostólico, com a predominância do idioma gre­go e a larga difusão do latim, ofereceu um panorama lingüístico indubitavelmente favorável à veloz difusão do evangelho, tanto nas grandes concentrações urbanas, como nas regiões mais afastadas do Império.

4. A expansão do judaísmo da Dispersão (ou Diáspora)
A partir dos tempos do exílio babilônico (séc. VI a.C.) começou-se a verificar uma população cada vez maior de judeus que habitavam terras estrangeiras. Primeiramente, as maiores colônias judaicas concentraram-se na Mesopotâmia, como resultado direto da presença dos judeus deportados para aquele lugar.
Dois séculos antes de Cristo, numerosas comunidades judaicas já podiam ser encontradas através de toda a Pérsia, Síria, Ásia Menor, Península Itálica, ilhas mediterrâneas e norte da África. A descoberta dos papiros de Elefantina revelou que já no séc. V a.C. o Egito abrigara uma populosa colônia judaica na região de Assuã. Essa comunidade - que alcançou significativa prosperidade na prática do comércio — ousou edificar para si um templo, fato repetido pelos judeus do séc. II a.C, que habitavam o Delta do Nilo.
A cidade de Alexandria, no Egito, habitada por judeus desde sua fundação em 331 a.C. por Alexandre Magno, registrou uma população próxima de um milhão de judeus entre 30 a.C. e 50 A.D., número semelhante à soma de seus compatriotas que habitaram a Pérsia e a Ásia Menor no mesmo perío­do. Na Itália e na Cirenaica somavam-se cerca de cem mil no primeiro sécu­lo, muito embora já tivessem amargado a expulsão de Roma em 139 a.C, o que se repetiria mais tarde sob Cláudio Nero, em 50 A.D. (conf. At 18.2).
Portanto, é tão curioso quanto relevante constatarmos que, no período apostólico, havia mais judeus habitando as terras estrangeiras do que a pró­pria Israel. Essa distribuição populacional acarretada pela Diáspora cumpriu um papel altamente estratégico para a rápida difusão do cristianismo através do mundo romano, naquele momento histórico.
Marcadamente distinto do judaísmo palestino pela adoção da língua grega, assim como pela influência dos costumes gentílicos, o judaísmo da Diáspora procurou manter fortes seus vínculos com a sagrada tradição ju­daica através do implemento de uma instituição que se tornou proeminen­te na difusão do cristianismo durante o período apostólico: a sinagoga.
Originada nos tempos de cativeiro babilônico, em função do afastamen­to do templo e visando manter viva a chama da fidelidade aos ensinamentos de Jeová, a sinagoga transformou-se, a partir de mais ou menos 200 a.C. numa organização desenvolvida, estruturada e solidamente infiltrada na cultura dos judeus, tanto dos que habitavam a Palestina como dos dispersos pela imensidão do mundo romano. Na sinagoga, não apenas se cultuava ao Deus de Israel, mas também instruía-se o povo na Lei e nos Profetas, atra­vés da leitura assídua e devocional dos manuscritos sagrados, ali cuidadosa­mente conservados. A sinagoga era também o baluarte de preservação da língua hebraica — então, em franco processo de extinção — e da análise das traduções escriturísticas para o aramaico e para o grego. Servia tanto de escola básica para a criança judia, quanto de tribunal para os transgressores, que ali recebiam não apenas sua sentença, mas também sua execução.
Tendo se espalhado pelos mais variados lugares onde se verificava a pre­sença judaica, essa instituição tornou-se fonte de notável influência sobre o mundo gentílico — envolto na mais crassa idolatria — aproximando muitos de seus habitantes da mensagem mono teísta dos judeus, que trazia em seu bojo um sistema ético e moral muito superior ao conhecido e apregoado pela cultura paga. Nas sinagogas, os judeus da dispersão, assim como os prosélitos e simpatizantes dentre os gentios, disseminavam, com grande ardor, a esperança messiânica, colaborando para a familiarização do mundo greco-romano com a mensagem apostólica, que anunciava na pessoa de Jesus o prometido das nações.
A forte influência da sinagoga atingiu também o seio da Igreja primitiva, para a qual exportou alguns de seus elementos, perceptíveis tanto na estrutu­ra organizacional, como na liturgia daquele período.
Como podemos verificar nas viagens missionárias de Paulo, narradas ao longo do livro de Atos, a sinagoga transformou-se numa parada obrigatória para os muitos cristãos primitivos de ascendência judaica, os quais, em suas missões evangelizadoras, se valeram dessa instituição para praticarem a regra de irem primeiro aos judeus e, então, aos gentios (conf. At 13.46).
O judaísmo da Diáspora, da mesma sorte, colaborou com a mensagem dos apóstolos ao estimular a produção das primeiras traduções das Escritu­ras para o grego, uma vez que grande parte dessa população havia perdido a familiaridade com o hebraico. Essas traduções viabilizaram a utilização do Velho Testamento num mundo de língua grega, dinamizando e enrique­cendo a transmissão da mensagem evangélica. A Septuaginta, por exemplo, a mais antiga tradução bíblica de que se tem notícia, foi organizada em Alexandria, entre 200 e 100 a.C, vindo a consagrar-se como uma espécie de "versão autorizada" do cristianismo primitivo. A ela pertence a maior parte das citações veterotestamentárias encontradas nos escritos apostóli­cos. Seu reconhecimento por parte da Igreja cristã pode ser medido pelo fato de a Igreja Ortodoxa Grega adotá-la, até os dias atuais, como sua ver­são oficial do Velho Testamento.
Muitos estudiosos das traduções bíblicas acreditam que as colônias ju­daicas a leste da Palestina, especialmente as do norte da Mesopotâmia, tra­duziram o Velho Testamento - parcial ou integralmente - para o siríaco, uma variante do aramaico falada naquela região. Crê-se que tal tradução teria, posteriormente, prestado grande auxílio na evangelização daquela re­gião, que se transformou, no período pós-apostólico, num distinto centro do cristianismo primitivo. Mais tarde, os cristãos daqueles termos, particu­larmente os de origem judaica, agregaram ao seu Velho Testamento siríaco uma tradução do Novo Testamento na mesma linguagem, cuja composição transformou-se na famosa versão siríaca da Bíblia, conhecida como Peshitta. Embora as cópias remanescentes dessa versão remontem ao século V, é pro­vável que outras versões incompletas tenham surgido ainda no fim do perí­odo apostólico. Sabe-se, atualmente, que essas comunidades cristãs de língua siríaca dispunham de grande ardor missionário, sendo responsáveis por parte das correntes evangelizantes voltadas para o oriente, especialmente para a Armênia, a índia e regiões da Ásia Central, como a China. Diz-se que nessas campanhas chegou-se a traduzir diversas porções das Escrituras Sagra­das - hoje perdidas - para os dialetos de muitas das tribos alcançadas, a partir das traduções siríacas. E possível, portanto, que apóstolos como Tomé, Judas Tadeu e Bartolomeu, cujas missões evangelísticas orientaram-se nessa dire­ção, tenham se beneficiado com a contribuição das colônias judaicas de lín­gua siríaca.

 5. A decadência religiosa dos povos conquistados por Roma
O Império Romano passou como um rolo compressor sobre muitos povos da Antigüidade. Essas nações possuíam, cada qual, variadas divindades às quais confiavam cegamente seu destino. Com a hegemonia romana veio tam­bém a descrença dos povos dominados em seus respectivos deuses, muitos dos quais acabaram sendo engolfados pela política de sincretismo religioso estimulada por Roma, em vigor desde o séc. III a.C. Essa fusão indiscriminada de religiões, a Pax Romana, visava, em última análise, imprimir nos povos dominados pelo Império a idéia de que seus deuses, embora possuidores de nomes diferentes, eram, na realidade, os mesmos adorados pelos romanos. Essa iniciativa contribuía para a diminuição dos focos de tensão social liga­dos às diferenças religiosas e produzia um senso de homogeneidade ainda maior ao Império (especialmente com a introdução, no primeiro século, do culto a César).
Embora tenha se tornado uma verdadeira coqueluche no princípio da era cristã, o sincretismo religioso — à parte seus méritos como estratégia política — não abrandou o grande vácuo espiritual deixado no coração de muitos dos cidadãos de então, especialmente do estrangeiro, que havia testemunhado a impotência de suas divindades ante a fúria conquistadora de Roma.
A desilusão com a multiplicidade de deuses do panteão romano, somado a uma crescente busca pelo espiritual, estimulou o surgimento e o cresci­mento de muitas das chamadas religiões de mistério, originárias de regiões como a Pérsia, o Egito e a Ásia Menor e marcadas pela devoção a deuses de caráter mais pessoal. Algumas dessas religiões, como o culto a Cibele, a Isis e ao deus Mitra, ainda que representantes do mais vil paganismo, acabaram curiosamente aproximando o cidadão do primeiro século - ainda que sob uma perspectiva corrompida — de alguns conceitos espirituais importantes, que viriam a ser proclamados pelos apóstolos do cristianismo, tais como o sacrifício vicário (ou substitutivo), o derramamento de sangue para purifica­ção e a intervenção de um deus-salvador.
Portanto, o primeiro século - com a decadência religiosa dos povos con­quistados por Roma - apresentou uma atmosfera essencialmente favorável à pregação e à aceitação do evangelho em larga escala, embora devamos reconhecer que o mesmo sincretismo religioso, largamente estimulado en­tão, tenha influenciado boa parte da sociedade da época a considerar judeus e cristãos praticantes de um ateísmo que ameaçava a paz social, assim como a unidade do Império, dada sua rejeição a qualquer forma de união com o paganismo romano. Assim, aos poucos, estabeleceu-se o clima apropriado para as perseguições político-religiosas infligidas pelo Império contra a Igreja primitiva, as quais, apesar de resultarem no bárbaro massacre de milhares de cristãos, por outro lado contribuíram para o fortalecimento do vínculo da fé e do amor entre aqueles que sofriam por amor a Cristo.
 FONTE: Doze homens e uma missão / Aramis C. De Barros. - Curitiba : Editora Luz e Vida, 1999.

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