quarta-feira, 29 de junho de 2011

Livro A Peregrina - John Bunyan (4ª Parte)

Imagem cedida por: http://renovadapl.blogspot.com/2011/04/jesus-o-unico-caminho.html


Os peregrinos são agasalhados pelo Porteiro. Prosseguindo seu caminho, as mulheres são incomodadas por dois vilões e oportunamente socorridas pelo Auxiliador.

Depois disto vi que o Senhor dirigia-lhes muitas palavras consoladoras, as quais os enchiam de alegria; também os conduziu a um terraço que havia sobre a porta.
—A mesma vista —agregou— vos será novamente oferecida durante o caminho para vosso consolo.
Depois os deixou sozinhos durante uns momentos numa sala de verão, onde travaram entre si a seguinte conversação:
CRISTIANA— Graças ao Senhor! Quanto me alegro de ter entrado aqui!
MISERICÓRDIA— Bem podes te congratular; porém eu, sobre tudo, tenho motivos fundados para pular de alegria.
CRISTIANA— Houve um momento, enquanto estávamos à porta, quando havia chamado e ninguém respondia, em que temi que toda a nossa moléstia e os nossos esforços tivessem sido inúteis, especialmente quando aquele cachorro ruim dava tais latidos.
MISERICÓRDIA— O temor assaltou meu coração, sobre tudo quando vi que tinham recebido vocês, enquanto eu ficava fora. "Agora", disse para mim, "cumpriu-se o que está escrito: 'Duas mulheres estarão juntas moendo; uma será tomada, e a outra será deixada'" [1]. Devi esforçar-me para não gritar: "Aí de mim, que estou morta!". No momento não me atrevi a chamar mais; porém, alçando os olhos, vi o que estava escrito sobre a porta, e ganhei ânimo. Então me pareceu que se não chamava outra vez morreria, e assim bati, mas não posso te dizer como, porque meu espírito lutava entre a vida e a morte.
CRISTIANA— Não sabes como chamaste? Pois as batidas eram tão fortes que me fizeram estremecer; nunca em minha vida tinha ouvido semelhantes golpes; achei que tinhas a intenção de entrar por força ou que ias 'tomar de assalto o Reino" [2].
MISERICÓRDIA— Aí! Quem em semelhante situação teria agido de outra forma? Já viste que a porta havia-se fechado para mim, e que ali havia um cão raivoso. Quem, digo eu, sendo tão tímida como eu, não teria chamado com todas as suas forças? Mas, o que disse o Senhor a respeito de minha ousadia? Não se enfadou contra mim?
CRISTIANA— Quando ouviu o barulho que fazias, sorriu suave e carinhosamente. Acredito que tua importunidade o agradou bastante, pois não manifestou nenhum desagrado. Porém me estranha muito que tenha um mastim tão feroz; de sabê-lo de antemão, temo que não teria a coragem para aventurar-me como o fiz. Mas já estamos dentro, e me alegro de todo coração.
MISERICÓRDIA— Se desejas, eu lhe perguntarei, quando desça, por que tem tão feroz animal em sua fazenda; espero que não o leve a mal.
—Ah, sim! —disseram as crianças—, e persuade-o para que o mate, porque tememos nos mordam quando partamos daqui.
Efetivamente, ao descer novamente o Senhor, Misericórdia prostrou-se diante dEle, dizendo:
—Que meu Senhor se digne aceitar o sacrifício de louvores que agora o ofereço.
—Paz a ti; levanta —lhe respondeu.
Porém ela continuou prostrada, agregando:
—Justo é tu, oh Senhor, embora eu me atreva a discutir teus juízos. Por que guarda meu Senhor em seu curral um cão tão feroz, à vista do qual mulheres e crianças como nós fogem atemorizados pela porta?
—O cão —disse— não é meu, e está encerrado em outra propriedade; meus peregrinos somente ouvem seus latidos. Pertence ao Castelo que se vê lá, um pouco longe daqui, mas pode se aproximar destes muros. Seu barulho tem espantado muitos peregrinos sinceros. Certamente que seu dono não o tem por boa vontade para comigo, mas ao contrário, com o objeto de impedir aos peregrinos de virem a mim, e infundi-lhes temor para que não chamem à porta. Alguma que outra vez escapou-se, e tem acossado e maltratado os meus amados; por enquanto eu sofro tudo com paciência; mas eu dispenso aos meus ajuda oportuna, para que não sejam entregues a ele e faça deles o que deseje, segundo o malévolo de sua natureza. Porém, ainda sabendo de antemão, não teriam medo de um cão, verdade? Os que vão mendigando de porta em porta, antes que pedir uma esmola, correm o risco dos latidos e ainda das mordidas de um cachorro. Por que, pois, haveríeis de ter medo de um mastim que esta em curral alheio, e cujos latidos volto em proveito dos peregrinos?
MISERICÓRDIA— Confesso a minha ignorância; falei do que não compreendia, reconheço que tudo o fazes bem.
Cristiana começou então a falar de sua viagem, e a pedir informes sobre o caminho. O Senhor, depois de dar-lhes de comer, lavou-lhes os pés e então lhes mostrou o caminho, assim como antes tinha feito com Cristiano. Ao começar a marcha, o tempo favorecia-lhes, e Cristiana gozosa cantava:

Bendito por sempre o dia
Em que a minha marcha começou;
E bendito seja o homem
Que a iniciá-la me incitou.
Longos anos transcorreram
Sem ter vida nem ter paz;
Agora corro quanto posso,
Tarde e melhor que jamais.
Pranto em gozo, medo em calma,
Mudam-se ao começar;
Se o princípio é tão formoso,
Mais gentil o fim será.

Do outro lado da cerca que resguardava a senda havia um pomar que pertencia ao amo daquele furibundo cão antes mencionado. Algumas das árvores frutíferas estendiam suas ramas sobre o muro, e sendo o fruto de bom aspecto, acontecia às vezes que os viajantes as colhiam, com grande prejuízo de sua saúde. As crianças, pois, com o instinto próprio da juventude, prendados da fruta, a colheram e começaram a comer, apesar das repreensões de sua mãe.
—Filhos meus —disse ela—, fazeis mal, porque aquele fruto não é nosso.
Ignorava, porém, que pertencesse ao inimigo; de outra sorte, tivesse morrido de medo. Por enquanto, não houve resultado algum desagradável, e os nossos peregrinos prosseguiram sua viagem. Tinham-se distanciado já muito pouco da porta pela que entraram, quando divisaram dois sujeitos de mal aspecto, que vinham às presas ao seu encontro. Vendo isto as duas mulheres, cobriram-se com seus véus e continuaram andando, com as crianças à frente. Ao se encontrarem com elas, os homens fizeram gesto para abraçá-las.
—Atrás! —exclamou Cristiana—. Continuem seu caminho como pessoas honestas.
Porém esses dois, fazendo-se de surdos, desprezaram os protestos das mulheres, e começaram a pôr-lhes a mão acima. Com isto Cristiana, acendida de ira, deu-lhes pontapés, enquanto Misericórdia fazia o que podia para afastá-los.
—Deixai-nos passar —gritou novamente Cristiana—. Não temos dinheiro, somos peregrinas como vês, e para viver dependemos da caridade dos nossos amigos.
—Não buscamos dinheiro —disse um deles—, mas viemos a dizer que sem quereis conceder-nos o pouco que pedimos, os faremos mulheres de fortuna.
Cristiana, que adivinhou as intenções, respondeu:
—Não vos ouviremos, nem atenderemos as vossas razões, nem acederemos aos vossos rogos. Temos muita pressa e não podemos nos deter; do êxito de nossa viagem depende a vida ou a morte.
Assim dizendo, as mulheres fizeram outro esforço para passar adiante, no entanto os vilões as impediram.
—Não atentamos a vossa vida —disseram—; outra coisa é o que desejamos.
CRISTIANA— Sim, desejais nos ter em corpo e alma, pois já sei com que intenção vindes; mas antes morreremos aqui mesmo que nos deixar cair nas redes que colocariam em perigo nosso bem-estar eterno.
Em seguida clamaram ambas mulheres aos gritos:
—Assassinos! A eles! —para colocar-se sob o amparo das leis que foram estabelecidas para a proteção da mulher. Vendo que os malvados não desistiam do intento, alçaram a voz mais uma vez.
Não estando ainda muito longe da porta, ouviram-se os gritos neste lugar. Reconhecida a voz de Cristiana, acudiram a todo correr em seu socorro. Ao chegar o Auxiliador perto dos peregrinos, encontrou às mulheres muito apuradas, enquanto as crianças choravam ao seu lado.
—Que vilania é essa que estais cometendo? —disse, dirigindo-se aos rufiões. Quereis obrigar às servas do Senhor a pecar?
E tentou aprisioná-los, mas eles fugiram, escalando a cerca e refugiando-se no horto do proprietário do cão, de modo que o mastim foi seu protetor.
Perguntadas as mulheres como estavam, "Bem, graças a ti, senhor", foi a resposta.
—Porém levamos grande susto. Muito te agradecemos ter vindo em nosso auxílio; de outro modo teríamos sido vencidas.
Depois de breves palavras, Auxiliador lhes disse:
—Muito me maravilhei, quando se hospedaram na porta, que, sendo débeis mulheres, não pedísseis ao Senhor os serviços de um guia. Certamente teria Ele acedido aos vossos rogos, e teríeis evitado estes contratempos e perigos.
CRISTIANA— Ah! Estávamos tão prendadas das bênçãos que acabávamos de receber, que os perigos que podiam aparecer ficaram no esquecimento. Além disso, quem podia acreditar que tão perto do palácio do Rei se esconderam semelhantes velhacos? Em efeito, temos feito mal em não pedir um guia; mas, sabendo o Senhor que nos seria vantajoso, resulta estranho que não o oferecesse.
AUXILIADOR— Não é sempre conveniente outorgas as coisas que não se pedem, para que não se tenham em pouco; porém, quando sentimos necessidade de uma coisa, aprendemos a apreciá-la devidamente e a nos valermos dela. Dado o caso que o meu Senhor vos tivesse concedido um condutor, não teríeis lamentado vosso descuido em pedi-lo, como agora tendes ocasião de fazer. Assim vedes que todas as coisas contribuem ao vosso bem, e tendem a acautelar-vos.
CRISTIANA—Voltaremos ao nosso Senhor para confessá-lhe a nossa indiscrição e pedi-lhe um guia?
AUXILIADOR— Eu oferecerei a vossa confissão. Não tendes necessidade de voltar atrás, porque não vos faltarão recursos nos lugares aonde cheguem. Em cada uma das hospedarias que meu Senhor preparou para o alojamento de seus peregrinos, encontra-se o necessário para escudá-los contra qualquer atentado. Contudo, como já disse, deseja ser solicitado para agir assim. Deve ser de escasso valor aquilo que não vale a pena de ser pedido.
Assim dizendo, os deixou continuar sozinhos sua viagem.
MISERICÓRDIA—Este tem sido um desengano muito rude. Figurava-me que já estávamos fora de todo perigo, e que a tristeza não nos alcançaria mais.
CRISTIANA— A tua inocência, irmã, pode desculpar-te muito; porém, no que a mim toca, a minha culpa é bem maior, porquanto previ este perigo antes de sair de casa e, ainda assim, não me precavi quando me encontrei onde podia dispor dos médios necessários. Por isso me fiz credora de severas repreensões.
Misericórdia— Como podias saber disto antes de marchar-te? Descobre-me este enigma.
Cristiana— Vou dizer-te. A noite antes de partir, tendo-me deitado, tive um sonho. Parecia-me ver dois homens semelhantes em todo a estes dois vilões, que estavam ao pe de meu leito conspirando para arruinar-me e impedir a minha salvação. Era quando eu estava tão exausta de dor. "O que faremos desta mulher?", diziam, "pois dormida o mesmo que acordada pede perdão. Se lhe é permitido continuar sua viagem, escapar-se-nos-á como o fez o seu marido". Isto deveria ter-me acautelado, e deveria induzir-me a me precaver, quando tinha a mão o necessário para conjurar o perigo.
MISERICÓRDIA— Boa ocasião se nos tem proporcionado por meio deste descuido, para conhecermos as nossas imperfeições. Nosso Senhor aproveitou também esta circunstância para manifestar-nos as riquezas de sua graça, deparando-nos favores não solicitados e liberando-nos bondosamente das mãos de pessoas mais poderosas do que nós.


[1] Lucas 17:35
[2] Mateus 11:12
FONTE: Livro a Peregrina de John Bunyan


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