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OS DESORDEIROS DE ZWICKAU
Voltemos agora a Lutero, a quem deixamos no solitário castelo de Wartburgo, entregue à tradução da Bíblia. Durante a sua permanência ali não havia ninguém que pudesse cabalmente levar por diante a obra que ele tinha empreendido na Alemanha; e este pensamento - porque ele estava a par de tudo quanto se passava fora do castelo - fazia-o estar ansioso e agitado, e por fim levou-o a voltar a Wittenberg. Melanchton era tão instruído como ele, e, sem dúvida, não era menos firme na sua devoção pela causa que ambos defendiam, mas era muito brando e pacífico para o rude trabalho que Lutero tinha começado, e não parecia estar em condições de poder dirigir o movimento reformador naqueles tempos tumultuosos. Havia ali também André Carlostadt, um doutor em Wittenberg, bastante versado nas Escrituras Sagradas, mas com algumas idéias erradas na sua teologia, e além disso arrojado demais para se poder confiar nele como chefe. Os seus atos eram tão imprudentes que quando em Zwickau se levantou um grupo de homens com o fim manifesto de abolir sumariamente tudo que não estivesse expressamente prescrito na Bíblia, ele aplaudiu esse procedimento, e colocou-se à frente deles. Imagens, crucifixos, missas, vestes sacerdotais, confissões, hóstias, jejuns, cerimônias, decorações de igrejas - tudo estava para ser imediatamente varrido pela destruição; e todo o cristianismo se devia revolucionar, pelas influências combinadas do Evangelho e da espada.
Lutero logo que teve conhecimento disto, escreveu de Wartburgo aos amotinadores, dizendo-lhes que não aprovava o seu procedimento, nem se poria ao lado deles neste caso. "Tinha sido", dizia ele, "empreendido sem termos, com muito atrevimento e violência... Acreditem-me, eu conheço bastante o Demônio; só ele podia fazer as coisas deste modo, para trazer vergonha sobre a Palavra". As suas advertências foram porém inúteis; as medidas que ele propunha eram muito brandas e moderadas para os inconoclastas de Wittenberg, e foram por diante com as suas inovações.
VOLTA DE LUTERO PARA WITTENBERG
Tendo aumentado o tumulto, Lutero fechou os olhos ao próprio perigo, e, saindo do seu esconderijo, partiu para Wittenberg. Foi em vão que o príncipe lhe fez ver o perigo a que ele se expunha, e lhe mostrou a qualidade do inimigo que tinha no duque Jorge, por cujos territórios havia de passar. "Uma coisa posso dizer", escreveu ele, "se as coisas estivessem em Leipzig como estão em Wittenberg, para ali mesmo me dirigiria, ainda que chovesse duques Jorges durante nove dias, e que cada um deles fosse nove vezes mais feroz do que este. Portanto direi a Vossa Alteza (apesar de Vossa Alteza saber muito bem), que vou a Wittenberg sob uma proteção muito mais forte do que a de Vossa Alteza".
Ao chegar a Wittenberg em março de 1522, Lutero começou uma série de sermões, oito ao todo, sobre os fanáticos de Zwickau, nos quais tratou dos diferentes assuntos com um tato pouco vulgar. Estes sermões constituem um tesouro, e foram admiravelmente adaptados à ocasião a que se destinaram. No seu estilo vigoroso e picante fez-lhes ver o deplorável fim a que um tal excesso de zelo levaria sem dúvida o povo; disse-lhes que lhes faltava caridade, sem a qual a sua fé de pouco valia; que sabiam melhor falar das doutrinas que lhes eram pregadas, do que pô-las em prática; e que não tinham paciência e estavam prontos de mais a sustentar os seus próprios direitos. "Neste mundo", disse ele, "não se deve fazer tudo aquilo a que se tem direito, mas antes renunciar o próprio direito, e considerar, pelo contrário, o que é útil e vantajoso para os nossos irmãos. Não imagineis que aquilo que "deve ser" "há de ser" forçosamente, como estais fazendo, para que não tenhais de responder por aqueles que tendes desencaminhado pela vossa liberdade pouco caridosa". Estes sermões tiveram o efeito desejado. A agitação apaziguou-se, seguindo-se-lhe o sossego e a tranqüilidade. Os estudantes voltaram pacificamente aos seus estudos e o povo, às suas casas; e o príncipe não pôde deixar de reconhecer que Lutero tinha feito bem em sair de Wartburgo.
TRADUÇÃO DA BÍBLIA
Em seguida a isto continuou com a tradução da Bíblia, sendo muito auxiliado na árdua tarefa pelas revisões críticas de Melanchton. Poucos meses depois o Novo Testamento estava pronto, e em setembro de 1522 publicado. Foi recebido pelos seus compatriotas com muito entusiasmo, e teve de publicar uma segunda edição no espaço de dois meses, e em dez anos nada menos de cinqüenta e três edições se tinham publicado só na Alemanha! Então foi adicionado também o Velho Testamento. O povo alemão tinha agora uma Bíblia completa na sua própria língua, e isto contribuiu mais para a consolidação e propagação das doutrinas reformadas do que todos os escritos de Lutero juntos.
A Reforma estava agora assentada na sua verdadeira base - a Palavra de Deus. Até aqui falara Lutero. Agora é o próprio Deus que fala ao coração e à consciência dos homens. A sua Palavra era agora acessível a todos, e a Roma papal tinha recebido um choque do qual nunca se poderia restabelecer completamente. Pouco depois foi dirigido ao papa, por um concilio de bispos católico-romanos, um memorial sobre o assunto: "O melhor conselho", disseram eles, "que podemos dar à sua santidade é que devemos empregar todos os esforços para se evitar a leitura do Evangelho em língua vulgar... O Novo Testamento é um livro que tem dado mais ocasião a maiores distúrbios, e estes distúrbios têm quase arruinado a nossa igreja. Na verdade, se prestarmos séria atenção às Escrituras e as compararmos com o que geralmente se encontra nas nossas igrejas, ver-se-á uma grande diferença entre umas e outras; e que a doutrina do reformador é inteiramente diferente da nossa e em muitos respeitos diametralmente oposta a ela". Era assim que Roma se julgava a si própria; e que o poder da Palavra era reconhecido por aqueles que praticamente negavam a sua autoridade.
PROGRESSO DA REFORMA
No entanto, a Reforma continuava a ganhar terreno, e o interesse que o primeiro ato de Lutero tinha despertado não diminuía com o decorrer do tempo. O povo em toda a parte escutava a Palavra com prazer, chorando muitas vezes de alegria ao ouvir as boas-novas. Em Zwickau e Ana-berg, as multidões ávidas rodeavam os púlpitos dos reformadores, e escutavam-nos dias inteiros; e quando Lutero pregou o seu primeiro sermão em Leipzig aquela grande multidão de gente caiu de joelhos e bendisse a Deus pela Palavra que seu servo tinha o privilégio de falar. Os folhetos e os sermões do reformador eram levados de cidade em cidade; os vendedores ambulantes levavam-nos às aldeias mais distantes, e os navios transportavam-nos de porto em porto, introduzindo-os em todos os países onde houvesse homens bastante instruídos para os receber. Três anos depois do começo da Reforma, houve um viajante que comprou algumas das obras de Lutero em Jerusalém.
OPOSIÇÃO DE ROMA
Roma, como se pode supor, não descansava no caso, e fulminava os reformadores com as suas maldições numa cólera vã. "Heresia! Heresia!" ouvia-se por toda a parte, enquanto as excomunhões se multiplicavam e os editos reais se publicavam em número cada vez maior. Alguns pregadores do Evangelho foram presos, torturados, queimados, mas isso de nada servia: a Bíblia estava nas mãos do povo, e a resistência era inútil. As mulheres mais simples estavam sentadas ao pé das suas rocas, com as suas Bíblias no regaço, e confundiam os monges que vinham discutir com elas. Tinha-se levantado uma nova ordem de coisas, mas o poder que tinha produzido estes efeitos não provinha do homem. Era um poder que até ali tinha forças - para esmagar, e era poderoso para destruir as fortalezas do inimigo.
A Reforma estava ainda em começo quando rebentou a guerra dos camponeses, que lhe fez sofrer um grande atraso. Era o seu chefe um fanático chamado Tomás Münzer, homem que tinha tomado parte notável nos motins de Wittenberg, durante a reclusão de Lutero ao castelo de Wartburgo. Depois disso estabeleceu-se em Mulhausen, e empreendeu a sua grande obra (como ele lhe chamava) de derrubar o "reino pagão" e de exterminar os ímpios.
REVOLTA DOS CAMPONESES DA ALTA ALEMANHA
Os camponeses oprimidos ouviram-no com alegria, e correram às armas. Lutero, a princípio, foi ao encontro deles com a Palavra de Deus e com razões moderadas; mas quando se insurrecionaram abertamente, então escreveu contra eles, e chamou-lhes de ladrões e assassinos. As províncias da Alta Alemanha estavam agora mergulhadas em anarquia e confusão. A plebe, estimulada por um êxito temporário, e furiosa com a lembrança da injustiça e opressão que tinha sofrido, precipitava-se para aqui e aco-K lá, queimando e destruindo palácios, igrejas, conventos, até que por fim foram vencidos em Frankenhaussem pelo príncipe de Hesse, e totalmente derrotados. O seu ato temerário de rebelião não lhes serviu de nada, e quando voltaram para as suas casas, viram que com ele tinham aumentado seus males. Condenar sem distinção todos aqueles que tivessem tomado a mais insignificante parte no movimento, era agora a política do partido papal; e daí todos os males provenientes da guerra dos camponeses foram injustamente atribuídos à influência da obra de Lutero. A Reforma não sofreu pouco por causa dessa falsa acusação.
MOVIMENTO DIVERGENTE
Por essa época apareceram os anabatistas, assim chamados por sustentarem a doutrina de que o batismo devia ter lugar por imersão, e que os que tivessem sido batizados na infância deviam ser novamente batizados.
Os chefes deste movimento asseveravam que eram eles os verdadeiros reformadores, e anunciavam que o reino de Cristo estava prestes a manifestar-se. Tinham, porém alguns excessos: achavam que deveriam ter todas as coisas em comum, e que não deviam ser obrigados a pagar dízimos nem tributos... Eles aumentavam em número, e apresentavam uma vida muito rigorosa, assim como uma grande coragem na morte de mártires, quer seja por meio de fogo ou de água. O movimento continuou a aumentar, apesar da perseguição, até o martírio dos seus principais chefes.
O CONSELHO DE SPIRES
Pouco mais ou menos por este tempo os três mais poderosos príncipes da Europa, Henrique VIII da Inglaterra, Carlos V da Alemanha e Francisco I da França, uniram-se com o papa para a supressão dos perturbadores da religião católica e para se vingarem dos ultrages que tinham sido feitos à "Santa" Sé. Para esse fim foi convocado em Spires um Conselho de nobres, no ano de 1526, a que presidiu o príncipe Fernando, irmão do imperador. Foi lida aos príncipes reunidos uma mensagem imperial ordenando que fosse prontamente cumprido o edito de Worms contra Lutero. Mas isso não deu o resultado com que os amigos do papismo tinham tão ardentemente contado; e, em vez de entregarem o reformador à mercê de Roma, o Conselho submeteu ao imperador os seguintes itens: que eles fariam todos os esforços para aumentar a glória de Deus e manter uma doutrina em conformidade com a sua Palavra, e davam graças a Deus por ter feito reviver no tempo próprio a verdadeira doutrina de justificação; que não permitiriam a extinção da verdade que Deus lhes tinha revelado ultimamente.
Confiante, apesar da derrota, o imperador três anos mais tarde reuniu um segundo Conselho na mesma cidade. Os seus modos eram coléricos e despóticos, mas os nobres que defendiam a Reforma estavam tranqüilos e resolutos. Naqueles tempos estas qualidades eram muito necessárias. Ninguém esperava a inflexibilidade dos nobres, e a presença de um tal espírito entre eles era um novo elemento no Conselho alemão. Até ali o imperador tinha tido fama de exercer um poder absoluto, mas ia ter lugar uma crise na história da Reforma, e aquilo por que lutavam os nobres não tinha sido reconhecido pela política humana. Foi isto que o imperador não compreendeu.
ORIGEM DA PALAVRA "PROTESTANTE"
Fernando presidiu novamente a este Conselho e, sentindo que estava iminente uma crise, recorreu a medidas desesperadas. Usando da autoridade que ele ali representava, ordenou imperiosamente a submissão dos príncipes alemães ao edito de Worms. A sua conduta foi mais caracterizada pelo atrevimento do que pela sabedoria, e só serviu para agravar o sentimento que já existia. Para dar uma saída ao negócio, publicou-se um decreto resumindo as ordens do imperador, que os fidalgos católicos assinaram.
Foi aquele um momento de ansiedade para Lutero e a Reforma, mas o grupo reformador teve forças para sustentar a luta no Conselho. Sem receio da altivez de Fernando, e impassíveis às ameaças dos bispos, uniram-se em um grupo e no dia seguinte levaram seu protesto contra a decisão da assembléia. E foi o começo do protestantismo, e do Período de Sardo na História da Igreja.
FONTE: História do cristianismo / A. E. Knight [e] W. Anglin. – 2ª ed. - Rio de Janeiro : Casa Publicadora das Assembléias de Deus, 1983.
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